quinta-feira, 14 de março de 2024

o lero lero que ouvi

Estava pensando como escrever um conto. Só que há um problema, não gosto de falar de mim, o que parece inevitável muitas vezes. Então teria que inventar uma estória. Ouvi dizer que quem conta um conto aumenta um ponto. Difícil criar uma estória. Não queria falar sobre mim, está que narra. A narrativa é um (entre)mesclar de palavras, frases e como dizer tudo com palavras doces, se a maior parte dos que convive entre nós: aqueles, que você o leitor bem conhece, não têm uma língua tão amistosa. O escritor não parece escrever para agradar, ao que parece escreve por escrever. Na verdade, não sei, vai de sua língua, de seu pesar. O agradável está nos sentidos de quem lê e não nas  mãos de quem escreve. Vou dizer por mim, quando leio uma estória, às vezes fecho os olhos e abro de novo e penso na grandiosidade da simplicidade de palavras de alguns escritores. Já ouvi muito lero lero. E reparo muito, não sei o motivo, mas reparo nas palavras. Será que estou em boas mãos, às vezes me pergunto? Há aquelas pessoas que conseguem ver um todo, no sentido da frase e de uma amplitude no conjunto de palavras e frases - só que eu não consigo, sempre olho as palavras. Quando, não sei uma palavra, então aquilo me deixa reflexionante. Fiquei pensando neste lero lero... que ouvi. E gostei de ouvir ... dizer lero lero, porque ele disse na sua simplicidade. Um conto, uma estória é quase um lero lero, no sentido da letra. Todo mundo sempre quer escrever e ser como muitos dos grandes autores. Algo difícil porque são imbatíveis e com toda certeza sobre o que estou falando tem algo de lero lero… O lero lero é para distrair é para esquecer um pouco o que não se quer lembrar. É para dizer de modo sútil, não gosto disso. Só que, queria mesmo era que o tempo voltasse, a sucessão de acontecimentos. Parece estranho dizer isso: porque o tempo não volta. Sempre achei que não, eu acho que não. Queria que voltasse apenas há cinco anos ou sete anos. Só que o tempo não volta... E não sei falar sobre o tempo. O tempo é algo difícil e quando a chuva cai nunca sei se é bom, também nuca sei se a lua grande e brilhante na janela é bom. Hoje, é dia de sol ao menos aqui onde estou. O sol é tudo. Só que o sol é muito sublime. A chuva também é sublime, o rio e o mar, o vento – só que o sol é imbatível. O sol aquece e queima. O sol ilumina e ofusca. Do sol é preciso se proteger. Ele nos dá vida, mas há certa distância necessária. Tudo o que sei é que o sol é importante. O lero lero é um modo de proteger àqueles que amamos. Vou encher este texto de lero lero, de palavras soltas para não deixar e não colocar nada do que é importante para mim visível. É um modo de figuração, o que na poesia acho mais próximo. A figuração, a transfiguração é o caminho – de dizer – sem dizer, o que você sabe. Por isso, estou aqui me esforçando para dizer isso a você que sabe ou que deveria saber que as palavras que mais me envolvem são as simbólicas. E que está difícil explicar a apenas quem precisa saber. Li um poema e minha dúvida permanece: O poema chama “Reencontro com a amada” é de um escritor a outro alguém. E o verso fica em meu pensamento “Mas não o já velado, revelado demais que desencantou”. E a minha dúvida de leitora assídua, há anos, permanece. E outro verso “Mas a nudez nem existe.”. "O pio do quero-quero" e amizade, será que existe? "saya’su, acauã". E o que fica. E o que é importante. São muitas dúvidas.

De Pollyanna Nunes Ramalho

Tipografia do coração

Não sei quais palavras escolher quando penso em você, ou no que fomos. E toda palavra
aleatória de pessoas: amigos e amigas me faz lembrar daqueles momentos que olhava seu
rosto contra o sol e era como se fosse tudo. À vezes não sei bem de quem estou falando acho que este você não existi . Existe e talvez seja a mim uma mescla de um ideal de alguém que goste ou gostei muito. Está na minha vida como um momento de paz tão difícil – ainda mais agora. É dissonante feito o ar, uma respiração. Sinto sua falta ou de mim. Eu não sei, estou mesmo cansada. Explicar as minhas dores é difícil. Não era pessoas novas que queria na minha vida, era você ou que tudo estivesse bem. E não pode imaginar o que tem sido a mim. E quer saber, você era feito flores caídas que forravam o meu chão ou um ar, ou um fôlego quando tudo estava ruim ou talvez você era aquele olhar que eu carregava ou você era o nó na minha garganta. Ajudava pensar em você quando tudo estava completamente impossível e mesmo nas minhas palavras mais vulgares por engano foi porque
no fundo imaginei você no amago da minha existência. E me cansa mais ainda me sentir uma sonambula pelas tardes do meu dia e mais ainda me enfastia certas coisas que não pode entender. As palavras rudes dos seus, você não sabe. Doem. Doem mais ainda os meus e ver tudo igual todos os dias. E escondo a sua existência nas minhas palavras. E não se pode saber porque não tenho imagem alguma sua, lembrança. Aquelas cartas talvez tenha guardadas alguma ou talvez jogou todas fora. Já não sei mais o que sou e se é você quem é importante ou quem me ensinou tantas coisas. Tudo se mistura. O que adianta ver alguém parecido com você se não é você. É um reflexo, uma fisionomia, um contorno mal feito do que é você. As minhas dúvidas são tantas. Quem é você? (Ce) não posso mais dizer  – acordo e não quero mais falar de seu nome –


Os olhos,
Os olhos são de cores variadas e modos diversos, são olhos,
a pupila dilata quando algo surpreende,
o que se vê fora é de dentro,
o externo não funciona sem o interno,
os olhos olham, a visão de ver é uma verdade
que vem de dentro ao ver o externo, o mundo existe a partir de um olhar
o mundo sem o olhar humano, é ininteligível
– inscreve-se aqui com aponta do lápis ou caneta –
e quando se acorda de manhã o mundo é visível.
Olhos são o espelho da alma, mas ao contrário do que se pensa,
os olhos não estão fora, mas dentro.

Por Pollyanna Nunes Ramalho

 

quarta-feira, 26 de abril de 2023

o que é Literatura

Por muito tempo da antiguidade, passando pelo renascimento ao período romântico, com a leitura e a releitura de Platão e Aristóteles a arte poética fora entendida enquanto mimesis. Noção que foi se modificando como mostra a história literária. M. H. Abrams, por exemplo, explica que a teoria pragmática (ênfase no efeito produzido por uma obra de arte poética) e com a teoria expressiva (ênfase na subjetividade do poeta), começou-se a dar ênfase na percepção do mesmo. Já a teoria objetiva focalizava a arte poética enquanto “arte pela arte”, a saber, o texto em si mesmo. No contexto, pós críticas kantianas e junto a ascensão da burguesia no século XVIII e, por conseguinte, a do Romance, a Literatura passou a ser compreendida como área de estudos própria mais do que pela via filológica, mais do que produção de textos escritos e impressos, a arte poética mais do que mera emulação do mundo. Além de pensar no sentido de Literatura como letra, nota-se a história literária que se começou a institucionalizar um campo de estudos próprio.

Do Biografismo, ao formalismo russo, ao new criticism (close reading), ao estruturalismo, ao pós-estruturalismo, à estética da recepção passou-se a ênfase do autor, ao texto, ao leitor. A partir da história literária, no que concerne a definição de um texto literário ou sua diferença em relação a outros campos de conhecimento, sua definição pode ser compreendida por meio da “função poética” (Jakobson), sua literariedade”, o nível de ficcionalização, imaginação, seu valor conotativo (Wellek) e as figuras de linguagem que se apresentam. Neste sentido, um texto literário pode ser lido nestes três níveis, a considerar o autor, o leitor e talvez o mais importante o texto, o que significa se questionar quem escreveu um texto e em qual contexto, qual a recepção de uma obra literária, qual o horizonte de expectativa “deste leitor” e qual a estrutura, o que um dado texto tem de literário, sua ficcionalidade enquanto um construto de linguagem.De acordo com Antoine Compagnon não são todos os textos que podem ser considerados Literatura, pois como afirma: 

“Tudo o que se pode dizer de um texto literário não pertence, pois, ao estudo literário. O contexto pertinente para o estudo literário de um texto literário não é o contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso literário.” (p. 45). Compagnon, comenta que ainda que boa parte dos estudos teóricos Literários com o ponto de vista do estruturalismo e new criticism tenha se fixado ao texto e rejeitado a relação entre Literatura e Mundo, o autor mostra como a Literatura também
possui referencialidade. Na sua leitura, “o crítico está diante do livro como o escritor está diante do mundo, mas o escritor nunca está diante do mundo; há sempre o livro entre ele e o mundo.” (p. 137) No nexo entre Literatura e mundo, Compagnon comenta “Na realidade, o conteúdo, o fundo, o real nunca foram totalmente alijados da teoria literária.” (p. 138). Já o nexo entre autor e a Literatura ele comenta:

Quando alguém escreve um texto, tem certamente a intenção de
exprimir alguma coisa, quer dizer alguma coisa através das palavras
que escreve. Mas a relação entre uma sequência de palavras
escritas e aquilo que o autor queria dizer através dessa sequência
de palavras nada assegura em relação ao sentido de uma obra e
àquilo que o autor queria exprimir através dela. (p.80)

Ezra Pound nota que Literatura é “[...] Linguagem carregada de significado” (p.32) e acrescenta “Literatura é novidade que permanece novidade” (p. 33). Nessa direção, a literatura ainda que se refere ao mundo é construto de linguagem em que se seleciona se combina signos linguísticos. Numa leitura diferente, Bernard Mouralis comenta que a literatura é uma instituição, um corpus e um sistema em que se constrói um todo significante. Não é uma ideologia em si é um dado signo de sistema e referências, uma herança de legitimação literária. Compagnon também mostra que por muito tempo a literatura era ensinada como história literária e que em meados do século XVIII tornou-se aos poucos se instituiu uma disciplina de Estudos Literários nas universidades.

sábado, 22 de abril de 2023

A senhora que ali estava/ conto

Pela manhã, Ina resolveu conhecer um novo lugar, estava cansada. Não os pais, não o marido, não as pessoas compreendiam. Então por uma semana passou em uma nova cidade e, todos os dias de manhã caminhava por algumas ruas, achava aquele lugar de aparência agradável. Já que estava passando muito mal mesmo, e as pessoas não poderiam imaginar – resolveu caminhar. Viu uma senhora sentada num banco e pensou em conversar com ela para ver se o tempo passava e aqueles sentimentos de tristeza e insatisfação passassem junto. A senhora prontamente lhe deu bom dia e disse que esperava por coincidência que alguém sentasse ali e falasse com ela também. Perguntou seu nome e ambas disseram uma à outra seus respectivos nomes.


O sol pela manhã como de costume naquele lugar estava ameno. Ina percebeu no modo de ser daquela senhora certa avidez para lhe contar algo sobre ela mesma. Achou que deveria perguntar o que ela queria dizer. A senhora lhe disse:

___ A vida é muito difícil, possui nuances de possibilidades e de momentos agradáveis, muito embora a maior parte são momentos complicados.

Então, Ina que não era muito jovem, olhou para aquela senhora e viu seus olhos profundos, esperou com certa obliquidade que ela lhe falasse alguma coisa que fizesse esquecer tantos problemas da própria vida. Aquela senhora lhe perguntou:

__Você espera que eu conte algo de bom e emocionante sobre minha vida? Veja só, olhe bem para mim, você mal me conhece e pelo visto acredita que somente você tem problemas que insiste em esquecer. Não fui uma mulher conhecida, não tive grandes ambições, mas passei por alguns bocados.

A pupila dos olhos de Ina se abriram naquele momento, ali mesmo percebeu que havia algo de importante nas palavras daquela senhora.

_Pois bem, disse a senhora, vou começar a falar algumas coisas, você não me conhece e talvez tudo o que posso te contar sirva somente para que você faça uma reflexão, depois que você acordar pela manhã e depois que você tomar o seu café e depois que estiver bem entediada e você resolver caminhar, bem depois que você sentar aqui e falar comigo. Não tenho dúvidas de que você ficará cansada depois de um certo tempo de conversa, quando a narrativa estiver exaustiva e você dará um desculpa esfarrapada para ir a sua casa e você perceberá que a sua vida não é tão inútil quanto

parece, então você voltará para ter essa conversa de modo que você entenderá que seu modo de comunicar com as pessoas não é tão mal assim, assim você vai a qualquer momento parar de vir até aqui ouvir as peripécias de uma vida cansativa...

__Pode ser, disse Ina, pode ser que isso aconteça, pode ser que não, a senhora não sabe nada sobre mim também. Com toda certeza, algo me diz que a senhora tem algo para contar, e fiquei curiosa.

___ Tem certeza que está decidida em saber algo sobre mim. A minha vida é sem graça, e a memória do ser humano lembra e esquece, é fiel e trai para adquirir coisas novas. E ainda tem aquilo que dizem ser involuntária. Ah, você sabe! Aquilo do bolo, do cheiro que faz lembrar.

___ Nossa, mudando de assunto, deixaram uma poça de água ao lado deste banco, como gostaria de xingar o biltre que fez isso, disse Ina. Poxa, é preciso compreender que pessoas sentam aqui, não podem deixar o lugar nesse estado.

A tarde eclipsou a manhã e quando ambas perceberam aquele dia já havia acabado. A frustração de Ina foi muito grande, uma vez que ela não conseguiu entender nada sobre aquela senhora e ela sabia que teria que voltar no outro dia para saber mais sobre. Começou a ter certa curiosidade sobre quem era, onde morava, porque ela parecia tão sábia e de algum modo trazia uma sagacidade no olhar. Quem era aquela senhora? Com quem ela vivia? O que poderia representar? Talvez nada, talvez a vida, talvez a morte.

No outro dia, pela manhã parecia o mesmo dia, Ina não estava bem, não queria falar sobre isso, estava cansada de falar, falar sozinha. Precisava ouvir algumas coisas que não fosse a própria voz. Sabia que naquele momento estava um tanto só no mundo. E que não aguentava mais o joguete com cores, com roupas, com a vida e a saúde dela. E a vida na atualidade tinha de tudo isso nas redes e queria não ser achada, mas inevitavelmente tinha sido achada, e isso poderia ser um motivo de perda. E estava vivendo as querelas do mundo. Com tantas coisas não resolvidas, como se fosse um algo sem fim. Se desconectou por um tempo e após a caminhada que pelo visto se tornaria algo cotidiano, sentou-se novamente no banco. A senhora não estava lá, então esperou e esperou.... E refletiu como a espera é algo horrível. Será o tempo de dentro o mesmo de fora? Pensou.

E ainda olhou para o céu, refletiu sobre a espera do que se sabe que não vem, então por que se olha tanto o céu? Se nada acontece. Lembrou de algumas aulas iniciais que teve com Herr Wald quando aprendeu os dias da semana Montag, Dienstag, Mittwoch, Donnerstag, e lembrou ainda que a sexta-feira/Freitag sempre era o pior dia da semana. Esperava ter a própria vida de volta. E as palavras, as frases e o todo – essas leituras descontínuas da vida: um documento, uma música, uma placa, um outdoor, uma imagem, um sinal, um livro, um ponto, uma letra, nada disso, nenhum texto poderia urdir a vida e fazer com que ela se sentisse bem naquele momento. Talvez apenas as pessoas. Passou dez, vinte minutos e a senhora chegou. Franzina e se sentou ao lado de Ina. Com o mesmo olhar profundo do dia anterior. Ela observou Ina e parecia querer perguntar se estava tudo bem, não perguntou sobre, talvez para não criar um mal-estar. Começou a tagarelar umas frases. Depois a senhora contou a Ina sobre a sua infância, disse que a mãe sempre dizia que era preciso estudar, que não a havia colocado no mundo para outra coisa que não fosse ter uma boa educação. Com Ina parecia ser um pouco diferente...não quis comentar. Aquela senhora passou horas falando sobre os namorados que teve na vida, que foram poucos, mas o suficiente para entender que alguns homens são importantes e necessários enquanto outros é bom manter uma distância. Ela contou que alguns inspiravam confiança, respeito com as mulheres e que outros são medrosos e não respeitavam muito. A senhora disse que apesar de tudo, teve bons namorados. E que nem sempre concordava com as ideias do marido que eram bem diferentes. Dizia que alguns homens com seus vinte e cinco aparentavam nada demais, quando chegavam aos seus cinquenta eram como o vinho melhores ficavam. Outros, eram o contrário, aos trinta já conseguiam arrasar corações. E isso acontecia também com as mulheres. Ina lembrou que ouviu uma vez dizer para se “aproveitar o dia” antes que não pudesse mais, e ficou chateada com esta frase tão conhecida, pois sabia que o tempo para ela passava também - talvez rápido demais e que nunca soube vivenciar o seu “dia”. Aquela senhora falou sobre tantos assuntos naquela manhã que o tempo passou tão rápido quanto um sopro. Depois Ina foi para casa tão leve como se fosse o próprio vento. Ela se sentia o vento, passando por em torno de todas as casas que ali estavam. Ela era o próprio vento, como se pudesse entrar na respiração das pessoas, era um sopro. Foi assim que se sentiu.

No fim da tarde, Ina foi para casa e à noite foi dormir. Tinha muitas dores. Porém, não queria pensar nisso. Estava simplesmente matutando sobre as palavras daquela senhora. Dormiu com essa ideia...

No terceiro dia, ao acordar, fez o mesmo dos outros dois dias: caminhou e logo de longe avistou a senhora sentada naquele banco. Achou, mínimo bom, não ter que esperar sozinha por ela para continuar aquela conversa dos dois últimos dias. Desta vez, foi Ina que puxou o assunto. Perguntou àquela senhora, de onde ela era. Foi então que ela disse:

__Pode ser que chegue algum dia que eu lhe direi, talvez você não deva saber, pois venho de um lugar distante. Em algum momento saberá! A senhora começou a comentar sobre o que gostava de comer pela manhã. Disse que comia algumas baguetes, alguns pães doces. E que gostava muito de um café. Gostava muito de uma broa, principalmente as que tinham leves pedaços de queijo no recheio. Ina teve que concordar com ela que realmente aqueles alimentos eram bem saborosos. E de fato quem é que não gosta de um bolo ou de uma broa. Pensou também, naquele instante, sobre alguns amigos e amigas que ela tem todo apreço e afeição. Foi assim que veio na memória o passado e o presente. Ao retomar seus assuntos, a senhora falou sobre as rodas de amigos e amigas que tinha. Disse que durante uma semana passou uma tarde falando, com um amigo, sob o pé de uma montanha, das diferenças do cantar dos pássaros ao cume de uma montanha. Ina ficou incomodada, pois apesar de dizer tantas coisas, aquela senhora não explicava muito bem nada sobre si. Acenou-lhe e foi para casa – naquele dia mais cedo.

Ina refletiu sobre o quanto estava cansada, uma vez que aqueles diálogos pareciam não chegar a lugar algum, e estava preocupada. Queria sua vida de volta, rever seus familiares. Tantas pessoas que conhecera também no tempo de estudo. Ficou uma dúvida, voltar para sua cidade ou entender por alguns dias aquela senhora. Em casa, abriu um livro havia, um poema de uma escritora...

Adormeceu com essa ideia e ao acordar pela manhã, não tinha ânimo para caminhar. Apesar disso, não quis imaginar àquela senhora, naquele banco a sua espera. Quis ir em direção ao local que se sentavam para conversar. Olhou para os lados e ao atravessar a rua, a senhora lhe acenou. Ina sentou-se ao seu lado e novamente falaram por toda a tarde…

No outro dia, Ina que não se sentia bem para ir conversar como fazia matutinalmente, achou que seria melhor ficar em casa e pensar se voltaria a sua cidade. Então Ina só foi no outro dia caminhar e procurar aquela senhora para se despedir e dizer a ela que estava indo procurar seus familiares.

Foi aí que aconteceu algo estranho, aquela senhora não estava lá, havia um senhor varrendo a calçada. Ina perguntou sobre, se havia visto uma senhora franzina, de aparência agradável ali sentada. O senhor disse que havia uma história sobre uma senhora que falava com as pessoas naquele banco, mas que ela já havia morrido. Muitos moradores diziam que ela aparecia e depois de alguns dias não retornava mais. Ina que ficou estarrecida sem compreender nada resolveu ir embora daquela cidade e voltar para sua vida. Na sua casa, ao abrir a janela Ina se deparou com um vento e uma voz parecia dizer:

Sou o vento, ventaneio por todas os lares

sou o vento que vago voando vacilante vociferante

vento que inspira respira expira

ventaneio, sou movimento volante volátil

sou um vento basculante

sou um sopro restante

sou um vento que se esvai e vai...

Um arrepio passou pelos braços de Ina e ela se lembrou das conversas que teve com aquela senhora e como na sua compreensão ela parecia mais viva em seus diálogos do que os próprios vivos.


sábado, 23 de julho de 2022

Kant e o juízo do gosto

     Após sistematizar nas duas primeiras críticas o funcionamento da razão através da filosofia da natureza, onde seus conceitos estão fundamentados na legislação do entendimento e, por outro lado, da filosofia moral, onde sua própria legislação se funda na razão, Immanuel Kant na Crítica da Faculdade de Julgar [Kritik der Urteilskraft] descreve o funcionamento desta faculdade que a partir de um próprio princípio é capaz de fazer a conexão entre os dois domínios que constitui o saber humano.  A faculdade de julgar enquanto mediadora entre a razão e o entendimento não engendra uma lei por si, mas subsume o “particular da natureza ao universal”. Desse modo o ajuizamento do belo é representado a partir de um princípio subjetivo a priori e não advém do entendimento, uma vez que, enquanto juízo da percepção, sua representação não gera conhecimento. Embora o princípio seja transcendental, o sentimento de prazer na contemplação, livre e desinteressada do objeto belo apraz a posteriori.  

            Friedrich Schiller que também se debruçou nos objetos da filosofia estética, reconhece o mérito do trabalho de Kant que fornece os fundamentos da mesma.  

Além disso, o filósofo alemão em sua "Analítica da faculdade de julgar" expõe quatro definições ou momentos do juízo do gosto: 


  1.  Gosto é a faculdade de julgamento de um objeto ou modo de representação através de uma satisfação ou insatisfação, sem qualquer interesse. O objeto de tal satisfação se denomina belo. 


  1.  O belo é aquilo que apraz universalmente sem conceito. 


  1. Beleza é a forma da finalidade de um objeto, na medida em que é percebida nele sem a representação de um fim. 


  1. Belo é aquilo que se conhece, sem conceitos, como efeito de uma satisfação necessária.  



No primeiro momento da definição, Kant mostra como o belo, que não é teleológico, diferencia-se do bom e do agradável, na medida em que o primeiro possui um fim em si mesmo e o segundo quer fruir e depende da sensação. Por isso o belo apraz desinteressadamente e é reflexionante. No segundo momento, temos a descrição do juízo de gosto como um juízo estético que não se funda em conceitos e sim na percepção e que procura o assentimento universal tal como no sublime. Pois como Kant explica: “[...] os juízos "o homem é belo" e “o homem é grande" não se limitam apenas ao sujeito que julga, mas, como juízos teóricos, exigem assentimento de todos. (2018, p. 249)”. 


A terceira definição expõe como a representação do objeto belo, é conforme a fins, por isso ele se reflete no jogo como uma forma finalizada. O exemplo disto está no desenho e nas “Belas Artes”, pois nestas o essencial é o desenho, por isso o belo, não contenta na sensação, mas “apraz na sua forma”. Portanto, não é possível na contemplação encontrar uma causa, já que o objeto dito belo ou o estado mental é finalizado como se houvesse um conceito, mas não se pretende um fim. 

Schiller nos mostra que o belo da natureza está na conformidade à arte. Para ele o conceito fundamental universal da beleza não é a conformidade a fins como investiga Kant, mas a liberdade: "A conformidade à arte serve apenas para tornar visível a liberdade também em objetos naturais que devem ser ajuízados como belos: a lembrança de uma regra deve meramente nos fazer notar a independência de um objeto das mesma." (p. 66) 


"Toda formação (Bildung) ou forma consiste na limitação e é, pois, de certo modo, uma restrição surgida ou por uma regra ou pelo acaso. Em todos os produtos da natureza que se referem a uma técnica encontramos a dependência recíproca das partes em sua disposição mútua. Beleza, porém, é liberdade no constrangimento, natureza na conformidade à arte; ela está presa apenas à intuição imediata; a beleza natural não se funda sobre um conceito; a técnica de um produto natural recai imediatamente sobre os olhos." P. 67 



Assim, também o filósofo alemão distingue neste momento o juízo moral do juízo estético, se aquele é prático, este é no ajuizamento do belo contemplativo. No quarto momento, reforça-se o argumento de que o juízo estético não é apodítico, sua necessidade não se origina em conceitos, mas na pretensão a comunicabilidade universal, do comum assentimento, no dever da concordância. 

Assim também explica em sua crítica como a satisfação com o belo não depende de uma sensação. O sentimento de prazer despertado pelo objeto belo consiste no relacionamento do livre jogo entre a imaginação e o entendimento que realiza o “[...] acordo com os seus conceitos em geral (sem determinação dos mesmos)”. (2018, p. 152). Se ao julgar um objeto belo a mente contempla tranquila no jogo harmônico entre imaginação e entendimento, no ajuizamento do sublime a mente se encontra em conflito, por "inadequação da imaginação na destinação estética da grandeza":


[Sobre o sublime] O juízo mesmo, porém, segue a ser estético, já que, sem ter por fundamento um conceito determinado do objeto, apenas apresenta o jogo subjetivo das faculdades mentais (imaginação e razão), mesmo em seu contraste, como harmônico. Pois assim como a imaginação e o entendimento produziam no entendimento no julgamento do belo, por sua unanimidade, uma finalidade subjetiva das faculdades mentais, assim também a imaginação e a razão a produzem aqui por seu conflito. (2018, p. 155)


Schiller ao tratar do belo observa como é na reciprocidade entre o impulso sensível (vida) e o formal (forma) que se realiza a consumação do belo, isto é, o impulso lúdico, pois é no jogo em que sensibilidade e objetividade se suprimem mutuamente. Neste caso, a beleza é objeto comum a ambos os impulsos. Por isto, Schiller chama este jogo não de limitação mas de ampliação. A beleza, assim é o estado mediador que liga matéria e forma.  



A objetividade que trata Schiller à elaboração de um juízo do gosto reside também no fato pelo qual "o homem tem de tornar em lei a comunicabilidade universal de suas sensações" (p. 34) Assim ele mostra que o juízo do gosto compraz sem uma finalidade tanto como o juízo moral. Ambos os juízos se dão de forma semelhante no que concerne  à forma e imediatez, pois : 


 " o gosto possui, como razão prática, um princípio interno de ajuizamento, une ambas as naturezas do homem e facilita-lhe a transição à eticidade, pois assim ele afirma uma certa liberdade nas coisas sensíveis e imprime só seu tratamento o caráter da universalidade e necessidade." P. 35 


Como nota Schiller o gosto é a faculdade capaz de "referir  uma representação sensível a algo suprasensível" , faculdade que  "conduz do mundo sensível ao mundo inteligível"  e se fundamenta tanto na capacidade receptiva das impressões quanto na capacidade "autoativa" da imaginação e do entendimento. Mas não é apenas no jogo entre essas duas faculdades que que o belo é determinado, mas também.na própria razão ... 


"Ela recebe sua existência na natureza sensível e obtém seu direito de cidadania no mundo da razão" p.  



"O gosto unifica as faculdades superiores e inferiores do ânimo; ele chama a razão filosofante de volta das reflexões à intuição; ele oferece humanidade." P. 38  



Talvez não seria um equívoco a partir das distinções de Schiller entre o homem selvagem, bárbaro avaliar como o gosto se dá no homem cultivado, na medida em que nele há a hamonização… 



"Belo é um produto da natureza que aparece livremente em sua conformidade a arte" …


Schiller neste ponto pode estar tratando do mesmo sentido de Kant...ao julgarmos algo da natureza belo é como se pudéssemos vislumbrar uma regra nela..uma técnica ...como se houvesse uma técnica, como.se.finalizada...não sabemos se há nela inteligência, mas vislumbramos uma organização..assim o belo se.mostra na singularidade de sua organização….*** 



Kant " É preciso observar ainda que, embora a satisfação com o belo, assim como a satisfação com o sublime, não apenas se diferenciem dos demais julgamentos estéticos pela comunicabilidade universal, mas obtenham ainda, graças a está propriedade, um interesse em relação à sociedade (na qual são comunicadas), também a ruptura com a sociedade pode ser considerada algo sublime quando se baseia em ideias que desconsideram qualquer interesse sensível. Bastar-se a si mesmo, portanto não precisar da sociedade, sem ser contudo insociável, isto é, fugir da sociedade, é algo que se aproxima do sublime. (2018, p. 173)





Dedução somente sobre o belo da natureza ...


“O juízo de gosto determina seu objeto, no que diz respeito à satisfação (como beleza), com uma pretensão ao assentimento de todos, como se fosse objetivo.” P. 179


Ex. “essa flor é bela” 


O juízo do gosto tem pretensão à autonomia 


Daí que um jovem poeta não se deixe dissuadir da convicção de que seu poema é belo pelo juízo do público ou de seus amigos; e se ele lhes da ouvidos, não o faz porque mudou de opinião, mas por encontrar em seu anseio por aprovação um motivo para acomodar-se na ilusão comum – mesmo que todo o público tivesse mau gosto (ao menos do seu ponto de vista). Somente mais tarde, quando o exercício de sua faculdade de julgar a tiver tornado mais acurada, poderá ele afastar-se livremente de seus juízos antigos; tal como ele faz também com os seus juízos que se baseiam inteiramente na razão. O gosto só tem pretensão à autonomia. Fazer de juízos alheios o fundamento de determinação do próprio juízo será heteronomia. (2018, p.180)



  Kant


“Que obras dos antigos sejam, com razão, tomadas como modelos, e o seus autores sejam denominados clássicos, como se fossem os nobres dentre os escritores, ditando leis ao povo através de seu exemplo, é algo que parece sugerir fontes a posteriori do gosto e refutar a sua autonomia em cada sujeito.” 





“Mas, dentre todas as faculdades e talentos, o gosto é justamente aquela que, por seu juízo não ser determinável por conceitos ou preceitos, mais necessita dos exemplos daquilo que, no decorrer da cultura, contou por mais tempo com assentimento - para não recair logo na falta de cultura e na crueza das primeiras tentativas.” (2018, p. 181)


 “O juízo de gosto não pode ser determinado por argumentos, exatamente como se fosse meramente subjetivo.” P. 181


Não há, portanto, nenhuma demonstração empírica capaz de coagir o juízo de gosto alheio. p. 182 


§34


“Sob um princípio do gosto se poderia entender um princípio sob cuja condição fosse subsumido o conceito de um objeto e, por uma conclusão, se deduzisse então que ele é belo. Mas isso é absolutamente impossível. Pois eu tenho de sentir prazer imediatamente na representação desse objeto, e ele não pode ser-me imposto por nenhum tipo de demonstração.” P. 183***mas sim por reflexão 


“A própria crítica do gosto, portanto, é apenas subjetiva no que diz respeito à representação pela qual um objeto nos é dado, ou seja, ela é a arte ou ciência de colocar sob regras a relação recíproca de entendimento e imaginação na representação dada (sem referência à sensação ou conceito precedente) e, portanto, a harmonia ou desarmonia entre elas, bem como de determiná-la quanto às suas condições.” P. 183




“Agora, como o juízo não tem aqui por fundamento um conceito do objeto, ele só pode consistir na subsunção da própria imaginação (em uma representação pela qual um objeto é dado) sob a condição de que o entendimento em geral avance da intuição aos conceitos. Ou seja, como a liberdade da imaginação reside justamente no fato de ela esquematizar sem 184 conceitos, o juízo de gosto se baseia então em uma mera sensação da animação recíproca entre a imaginação em sua liberdade e o entendimento com sua legalidade; ele se baseia, portanto, em um sentimento que permite julgar o objeto segundo a finalidade da representação (pela qual um objeto é dado), fomentando assim o livre jogo da faculdade de conhecimento; e o gosto, como faculdade de julgar subjetiva, contém um princípio da subsunção - mas não das intuições sob conceitos, e sim da faculdade de intuir ou representar (isto é, a imaginação) sob a faculdade dos conceitos (isto é, o entendimento), na medida em que a primeira, em sua liberdade, concorda com o último em sua legalidade.” P. 185


Juízo formal de reflexão*juízo estético



[...] mas um juízo formal de reflexão que supõe essa satisfação como necessária em todos, ele 185 precisa ter algo como princípio a priori por fundamento que, embora possa ser meramente subjetivo (caso um princípio objetivo seja impossível para tal tipo de juízo), carece ainda assim de uma dedução, pela qual se compreenda como um juízo estético pode ter pretensão à necessidade. P. 186



Um problema que, portanto, diz respeito aos princípios a priori da faculdade de julgar pura nos juízos estéticos, isto é, naqueles em que ela não precisa (como nos teóricos) apenas subsumir sob conceitos objetivos do entendimento e não está sob uma lei, mas é antes ela própria, subjetivamente, tanto o objeto como a lei.


 Juízo do gosto é sintético 


“Por isso todos os juízos de gosto são também juízos singulares, já que não ligam o seu predicado da satisfação a um conceito, mas sim a uma representação empírica singular dada.” P. 187



Embora o prazer com o sublime da natureza, como prazer de uma contemplação pensante, também levante uma pretensão ao compartilhamento universal, ele já pressupõe um outro sentimento, qual seja, o de sua determinação suprassensível - que, por mais obscuro que seja, possui uma base moral. P. 189


§ 39 resumo 


Em contrapartida, o prazer com o belo não é nem um prazer da fruição nem uma atividade de base legal, nem tampouco um prazer da contemplação pensante a partir das ideias, mas sim um prazer da mera reflexão. Sem ter um fim ou princípio como padrão de medida, esse prazer é acompanhado pela apreensão comum de um objeto pela imaginação, como faculdade da intuição, em relação com o entendimento, como faculdade dos conceitos, e através de um procedimento da faculdade de julgar que ela também tem de executar em favor da experiência mais comum; com a diferença de que, enquanto aqui ela é forçada a fazê-lo com o objetivo de perceber um conceito empírico objetivo, lá (no julgamento estético) ela o é para meramente perceber a adequação da representação à atividade harmônica (subjetivamente conforme a fins) de ambas as faculdades de conhecimento em sua liberdade, isto é, para sentir o estado do representar com prazer. Este prazer tem de estar necessariamente baseado, em cada um de nós, nas mesmas condições, já que são condições subjetivas da possibilidade de um conhecimento em geral, e a proporção dessas faculdades de conhecimento, / / que é requerida para o gosto, também é requerida do entendimento saudável e comum que se pode pressupor em todos. Justamente por isso, aquele que julga com gosto (se não está errado nessa consciência e não toma a matéria pela forma ou o atrativo pela beleza) também pode esperar de todos os demais a finalidade subjetiva, isto é, a sua satisfação com o objeto, e considerar o sentimento universalmente comunicável, e aliás sem a mediação de conceitos. P. 190





Poder-se-ia até definir o gosto [sensus communis aestheticus] como a faculdade de julgamento daquilo que torna o nosso sentimento por uma dada representação universalmente comunicável sem a mediação de um conceito. P. 193



Empiricamente, o belo só interessa na sociedade; e, caso se admita o impulso à sociedade como natural ao ser humano, e a aptidão e a tendência para tal, isto é, a sociabilidade, como exigência 297 para o ser humano enquanto criatura destinada à sociedade, / / portanto como propriedade pertencente à humanidade, então não se pode deixar de considerar também o gosto como uma faculdade de julgamento de tudo aquilo que permite comunicar até mesmo o próprio sentimento a todos os demais, portanto como meio de fomentar aquilo que é requerido de cada pessoa por uma inclinação natural.




Kant não reduz o gosto a empiria, importa a relação a priori do juízo do gosto 




Agora, admito de bom grado que o interesse pelo belo da arte (no qual incluo também o uso artificial das belezas naturais para a ornamentação, portanto para a vaidade) não fornece prova alguma de um modo de pensar atrelado ao moralmente bom, ou mesmo somente inclinado a este. Em contrapartida, porém, afirmo que tomar um interesse imediato pela beleza da natureza (não apenas ter gosto para julgá-la) é sempre uma marca característica de uma boa 299 alma; / / e que, se esse interesse é habitual, ele indica ao menos uma disposição de ânimo favorável ao sentimento moral quando se , liga de bom grado à contemplação da natureza. E preciso lembrar bem, contudo, que aqui me refiro apenas às formas belas da natureza, ao passo que os atrativos, por mais que ela costume ligá-los tão ricamente àquelas, continuo deixando de lado, pois, ainda que o interesse por eles também seja imediato, é todavia empírico. P. 196


A associação com o bem moral..está apenas na relação com o belo da natureza




Essa primazia da beleza natural frente à artística (em que pese esta superar aquela no que diz respeito à forma), essa capacidade de despertar por si só um interesse imediato, concorda com o modo de pensar apurado e rigoroso que é próprio a todos os seres humanos que cultivaram o seu sentimento moral. Se um homem que tem suficiente gosto para julgar produtos da bela arte com a maior correção e refinamento / / abandona de bom grado o ambiente em que se podem encontrar aquelas belezas que entretêm a vaidade e as alegrias da sociabilidade, (2018, p. 197)


Interesse imediato somente pelo belo da natureza




Também é fácil explicar por que a satisfação com a bela arte no juízo puro de gosto não se liga a um interesse imediato do mesmo modo como no caso da bela natureza. Pois aquela é ou uma imitação desta última que chega a enganar - e então ela produz o seu efeito como se fosse (tomada por) uma beleza natural -, ou uma arte visivelmente direcionada, de maneira intencional, à nossa satisfação; neste último caso, porém, a satisfação com esse produto, ainda que tenha lugar imediatamente, por meio do gosto, produziria um interesse apenas mediato na causa em que está fundada, a saber, uma arte que só pode interessar por seus fins, jamais em si mesma. P. 199




 A arte se distingue da natureza do mesmo modo como o fazer (facere) se distingue do agir ou efetuar em geral (agere), e o produto ou consequência da primeira, como obra (opus), se distingue do último enquanto efeito (effectus). (p. 200)



Do ponto de vista do direito, somente se deveria chamar de arte a produção de algo por meio da liberdade, isto é, por meio de um arbítrio que toma a razão por fundamento de suas ações. P. 201



“E aconselhável lembrar, porém, que em todas as artes liberais é requerido algo de coercitivo, ou, como é chamado, um mecanismo sem o qual o espírito, que tem de ser livre na arte e é o único a dar-lhe vida, não teria um corpo e evaporaria por completo (na arte poética, por exemplo, a correção e a riqueza linguísticas, bem como a prosódia e a métrica); afinal, há muitos educadores novos que acreditam fomentar da melhor maneira uma arte liberal quando a libertam de toda coerção e transformam o trabalho em mero jogo.” P. 202



Se a arte, adequada ao conhecimento de um objeto possível, direciona as ações para tal requeridas somente para torná-lo real, ela se chama mecânica; se, em contrapartida, tem o sentimento de prazer como seu propósito imediato, ela se chama estética. Esta última é uma arte que é ou agradável ou bela. Ela é do primeiro tipo quando tem por fim que o prazer acompanhe as representações como meras sensações; e é do segundo tipo quando tem por fim que ele as acompanhe como modos de conhecimento. P. 203



Em contrapartida, as belas artes são um modo de representação que é por si mesmo conforme a fins e, embora sem fim, // fomentam 306 o cultivo das forças da mente para a comunicação em sociedade. P. 203


“[...] a arte estética, enquanto bela arte, é tal que seu padrão de medida está na faculdade de julgar reflexionante, e nao na sensação dos sentidos.” P. 203




Em um produto das belas artes é preciso ter consciência de que se trata de arte, e não de natureza; entretanto, a finalidade na sua forma tem de parecer tão livre de qualquer coerção de regras , arbitrárias como se ele fosse um produto da mera natureza. E nesse sentimento da liberdade no jogo de nossas faculdades de conhecimento - o qual, todavia, tem de ser ao mesmo tempo conforme a fins - que se baseia aquele único prazer que é universalmente comunicável sem fundar-se em conceitos. A natureza só era bela quando ao mesmo tempo parecia ser arte; e a arte só pode ser denominada bela quando temos consciência de ser ela arte, parecendo ao mesmo tempo natureza. P. 204



Assim, mesmo que seja intencional, / / a finalidade nos produtos das belas artes tem de parecer não intencional; ou seja, a bela arte tem de ser considerada como natureza, ainda que, evidentemente, se tenha consciência de que ela é arte. Mas um produto da arte parece natureza na medida em que encontramos a maior precisão na concordância com as regras segundo as quais o produto pode tornar-se o que deve ser; mas sem que se sinta qualquer incômodo com isso, sem que se perceba a forma escolar, isto é, sem 204 que se veja qualquer traço de que a regra esteve diante dos olhos do artista, impondo amarras às suas forças mentais. P. 204




Belas artes, produto de gênio 



“Que ele mesmo não pode descrever ou indicar cientificamente como cria o seu produto, a não ser dizendo que lhe dá a regra enquanto natureza;” p. 206


(Daí que a palavra "gênio" venha presumivelmente de genius, o espírito protetor e condutor que é dado a um homem no seu nascimento, como sua propriedade, e que fornece a inspiração da qual emanam aquelas ideias.) 4) Que a natureza, através do gênio, não dá a regra à ciência, mas sim à arte; e, mesmo assim, somente quando se trata da bela arte. P. 206


Gênio oposto ao espírito da imitação*originalidade 


Por mas técnica que se tenha, “[...] não se pode aprender a escrever poesia de maneira brilhante,” 


[...] ao passo que nenhum Homero ou Wieland poderia indicar como surgiram e se juntaram em seus cérebros as suas ideias, ao mesmo tempo ricas em fantasia e intelectualmente profícuas, porque nenhum deles saberia dizê-lo a si mesmo, muito menos ensiná-lo aos demais. P. 207


De acordo com Kant as belas artes são obras de gênio e dependem do talento ..poetas são gênios ...cientistas para ele não...pois estes fazem a demonstração...expõem seu método... o que Kant diria de poetas como Poe? Na filosofia da composição, onde o poeta expõe seu método... ao contemplar a arte bela se abstrair da técnica, de seu mecanismo de composição...


Ainda que, de fato, a arte mecânica e as belas artes - a primeira como mera arte do esforço e do aprendizado, as últimas como artes do gênio - sejam muito distintas entre si, não há nenhuma bela arte cuja condição essencial não seja constituída por algo de mecânico, que pode ser compreendido e seguido de acordo com regras, e, portanto, algo de escolar. Pois algo tem de ser aí pensado como fim, do contrário não se poderia atribuir o seu produto a arte alguma - ele seria um mero produto do acaso. Para colocar um fim em ação, porém, são requeridas determinadas regras das quais não podemos nos liberar.



  Kant observa que na obra de gênio o mecanismo não é exposto, mas isso não significa que não há técnica 



“Para o julgamento de objetos belos enquanto tais é exigido o gosto; mas, para as próprias belas artes, isto é, para a produção de tais objetos, é exigido o gênio.” P. 208


Uma beleza natural é uma coisa bela; a beleza artística é uma representação bela de uma coisa. (p. 209)


[...] ser declarado belo, então, uma vez que a arte sempre pressupõe um fim na causa (e sua causalidade), tem de ser posto, como fundamento, um conceito do que a coisa deve ser; e, na medida em que a perfeição da coisa é a concordância do diverso nela com a sua determinação interna como fim, é preciso que, no julgamento da beleza artística, a perfeição da coisa seja levada ao mesmo tempo em conta - algo que absolutamente não está em questão no julgamento de uma beleza natural (enquanto tal). (2018, p. 209) 



“Chega de falar sobre a representação bela de um objeto, que é somente a forma da exposição de um conceito pela qual este é universalmente comunicado. (2018, p. 210)”


O gosto é, contudo, tão somente uma faculdade de julgamento, não uma faculdade produtiva; (2018, p. 210)


Em sentido estético, espírito significa o princípio animador na mente. (2018, p. 211)


Agora, eu afirmo que esse princípio não é outra coisa senão // a faculdade de expor ideias estéticas; por ideia estética, porém, entendo uma representação da imaginação que dá muito a pensar sem que, no entanto, um pensamento determinado, isto é, um conceito, possa ser-lhe adequado; uma representação, portanto, que nenhuma linguagem alcança ou pode tornar compreensível. – Vê-se facilmente que ela é a contraparte (pendant) de uma ideia 211 da razão, a qual, inversamente, é um conceito ao qual nenhuma intuição (representação da imaginação) pode ser adequada. (2018, p. 211)


“Pode-se chamar semelhantes representações da imaginação de ideias; em parte porque elas ao menos aspiram por algo que está além dos limites da experiência,” p. 213


Pollyanna Nunes Ramalho Magalhães


Referências


DÖRFLINGER, Bernd. Por que o belo apraz com pretensão de umassentimento universal? As três justificações de Kant e o problema da sua unidade. Tradução Christian Hamm.Universidade de Trier: Alemanha, 2014.  


KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Trad. Fernando Costa Mattos Editora Vozes: Petrópolis, RJ, Editora Universitária: Bragança Paulista, SP, 2018. 


SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. Tradução Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. Iluminuras: São Paulo, SP, 2002. 


________. Fragmentos das Preleções sobre Estética do semestre de inverno de 1792-93. Recolhidos por Christian Friedrich Michaelis. Tradução Ricardo Barbosa. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2004.  



sábado, 24 de julho de 2021

 No delírio da tarde 


Eu vi meu rosto. 


Na taça emborcada do dia sorvido 


Eu vi meu rosto.


O cristal se partiu, 


Esgotei meus olhos na noite. 


Maria Angela Alvim


Livro "Superfície" 1950, em Poemas 



 Maria Angela Alvim 

V


Moro em mim? No meu destino largado - 

partido em mil?

Moro aqui? Demoraria 

Sempre aqui, sem me saber - fugindo sempre

estaria?

Eis um lugar. Degredo 

( de quê?). Dimensão se perseguindo 

num sonho? - Sim, que me acordo.

Tudo existe circunstante 

e ninguém para me crer. 

Sou eu o sonho, momento da ausência alheia ( que devasso quase fria)]

Morte, vida recente, 

Subindo em mim a resina,

ungüento de noite, amor.


As sombras e seus véus,

Tantos véus - o mais sucinto 

Preso a meu corpo ( aparente?)

Me divide em dois recintos. 

Um deles sendo equilíbrio

Noutro posso me conter.

Avanço no sono aberto 

Até a altura do dia,

Fria, fria, 

Mais fria minha pele 

Filtra a aurora - neste tempo 

Aquela hora, seu pulso de instante e ocaso. 


Eis que me encontro. Limite 

de transparência e contato 

Entre a luz e meu retrato, casta 

Parede a louca? 

Marulho d'água, caindo

 dentro de mim, claridade. 

Graças de mãos mais presentes 

Que minhas mãos, já vazias 

De sua forma, na palma. 


Que gesto extenso as reteve 

Sempre além, configuradas 

E este azul, quase em branco

 se desfazendo ( na carne?). 

Ah! Três retinas cortadas 

De um prisma, se amanhecidas 

Nestes vidros, na vigília. 

Ah! Três retinas pousadas 

Em ver, em ver contemplando 

(Ser, será o esquecimento 

De quanto somos - pensando?). 


VI 

Quero crer-me esse sentido 

De longa memória branca. 

Sobre ele não lembrar, 

- ficar, ficar, 

No encontro de tudo em pouco: 

O tempo se refez num instante 

Deste espaço superfície, 

Chão que nem me sustenta 

(Dura sou, eu, e dura amargura é a minha). 

Não, não me lembrarei, 

Seria pensar começos 

E outros fins - ó lunares 

Lembranças, doridos passos 

( Muitos fui acompanhando 

De longe e mais me pisaram 

Aqui, ali, onde sei). 


Estou? Se estou me consentem 

Os gestos e os movimentos? 

Nenhum ruído se atenta 

Que dentro não fosse ouvido. 

E tudo em mim se repete 

Enquanto durante e sempre 

A lembrança vai baixando 

A seu leito mais dormente. 

Os pensamentos seriam 

Roteiros menos sofridos? 

Deixá-los que se solveram 

Nestes noturnos se procurando, 

Da idéia, refluindo 

Sobre dúvida, distância 

E certeza, aéreo marco 

De um repouso em si medido. 


Deixá-los. Deixar-me enquanto 

Existe um consenso oculto. 

Pensarei que desvivi 

Num limite-lucidez 

Lá e, no entanto, aqui. 


Maria Angela Alvim, livro "Poemas" 
































sexta-feira, 12 de abril de 2019

O Lago

Resultado de imagem para lago



Intenso e fechado em si,
tão ansiosamente, ela percorre parte ( seus contornos),
analisa e observa: Qual seria sua profundidade?
ritualiza e percebe esta natureza estranha.
Quer vê-lá no íntimo, mergulhando assim até o fundo.

O corpo o sente pela terra úmida
que irradia o querer,
assim torna-se mais e mais fascinante.
A imaginação tenta substituir a sensibilidade,
Mas se vê inútil, não se completa e
no coração se fixa a imagem lançada exata pela seta.

Pulsa a experiência de sua aquosidade:
longe revelam-se os instintos mais básicos.
Quanto esforço deverá empenhar para ocultá-los?
Volta-se para trás, pondera o mergulho e lá
está, ser em si, completa - pronta.
Porém, sabe não ser convidativa e se lança, não se preocupa com o mundo.

Pollyanna Nunes