Em 1943, nas palavras de Drummond “o
mundo estava submetido a um processo de transformação pelo fogo” (2011: 13) e,
nesse processo, como o autor poderia deixar de tratar dos acontecimentos de sua
época? Acontecimentos que até hoje deixam cicatrizes – ao que parece –
insuperáveis. Sua consciência, seu modo
de enxergar a literatura, certamente, o impediria de fazer o caminho inverso,
de se colocar simplesmente, em uma torre
de marfim.
Em muitos poemas de “A Rosa do Povo”,
publicado em 1945, e em alguns ensaios/crônicas de “Confissões de Minas” é
possível perceber diversas relações históricas como, por exemplo, as dos
acontecimentos no âmbito global e particular, que afetam as duas formas
literárias – prosa e poesia, bem como as das utopias comunistas, nos quais se acercavam
muitos intelectuais engajados politicamente no período do estado novo. Assim,
principalmente em “A rosa do Povo” há uma preocupação coletiva, como se destaca
na seguinte inversão sintática: “Tal uma lâmina,/o povo, meu poema, te atravessa” (1995: 11),
mas também nos dois livros articulam-se tempo, mundo e homens. São confissões
que partem do “eu” de Minas para o mundo.
No poema “Carta a Stalingrado”,
Drummond realiza um tipo de Ode à cidade, uma homenagem à sua resistência e
acrescenta: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, desse modo, o
verso se abre para a leitura do escritor/jornalista e da poesia que, neste
contexto, é atravessada pelos fatos. O poema, também, refere-se às outras
cidades, que foram assoladas pela destruição. A ruína e a morte também são
tematizadas do mesmo modo como no poema “Visão 1944”, em que olhos não
conseguem abarcar tanta destruição. A morte está num porto da Itália, nos
homens que parte do Pará e do Quebec e aparece, também, na figura do muro
branco à espera de judeus de barbas e roupas negras.
Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro – e o muro é branco.
(Andrade, 1995:173)
Já no poema “Versos à boca da noite” o
tempo aparece logo na primeira estrofe de modo personificado e materializado
corporalmente neste sujeito: “rugas, dentes, calva...” (1995:148). A presença
do verbo “abater” acrescido da ruptura criada pelo enjambement demostra a violência aniquiladora deste tempo sobre
este “eu”. O tempo a partir daí constrói as relações do passado e do presente
ligados à juventude e à idade madura.
Alguns elementos também reaparecem em
diversos momentos como a mão, os olhos, o relógio e as mudanças atmosféricas, o
primeiro muitas vezes simbolizando o impedimento ou a ausência de ação, o
segundo inserido no tópico da visão precária, o terceiro ligado à aniquilação
do tempo e o quarto ligado às mudanças atmosféricas que virtualmente
metaforizam as indecisões do sujeito poético.
O sujeito do presente que está, digamos, na metade da vida, enxerga a
impossibilidade de se recomeçar o dia. Após os aborrecimentos gerados através
das experiências da solidão, da melancolia – amada e repelida –, das incertezas
criadas a partir das divisões entre dois mares, duas mulheres e duas roupas, a
figura da mão reaparece na oitava estrofe, mas não como a mão do tempo, e sim
como a mão do sujeito despido de curiosidade de amor. Além disso, embora haja a
recusa desse “eu” à plenitude, há também, simultaneamente, a rememoração – não
nostálgica – e a aceitação – não resignada – dessa noite, dessa idade que não
contém mais o furor dos vinte anos, mas que contém “um mergulho em piscina, sem
esforço”, uma inteligência adquirida no universo.
Diversas relações podem ser demarcadas
entre “A Rosa do Povo” e “Confissões de Minas”, são destaques: o tempo sob a forma de transição, de
passagem, de acontecimento e de memória, a morte:
sob a forma de cancelamento da vida e ruína dos homens e das cidades, o olhar em si: sob a forma de
questionamento e ironia deste “eu” no mundo e o nascimento: sob a forma da utopia comunista e de renascimento
da literatura.
Por fim, estes livros destacam um
momento de reflexão sob o tempo, mas antes de tudo através do olhar particular
de quem os escreveu. Quando Carlos Drummond de Andrade em “Escrevo estas
linhas” realiza as referências do período, o mundo já participara de muitas
destruições e os regimes totalitários de Hitler e de Mussolini estavam em um
começo de declínio. A batalha de Stalingrado foi um ponto-chave para a derrocada
do regime nazista, assim, o autor enfatiza a necessidade de se incorporar o
tempo na literatura, a necessidade de olhar além de si mesmo. A mesma ressalva
é realizada em “Poesia do Tempo”, no qual o autor realiza críticas à poesia
distanciada da vida ou como fuga da realidade.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 16. ed. Record, Rio de
Janeiro: 1995.
________. Confissões de Minas. Cosac
Naify: São Paulo, 2011.