quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Tempo e Mundo em Confissões de Minas e a Rosa do Povo


Em 1943, nas palavras de Drummond “o mundo estava submetido a um processo de transformação pelo fogo” (2011: 13) e, nesse processo, como o autor poderia deixar de tratar dos acontecimentos de sua época? Acontecimentos que até hoje deixam cicatrizes – ao que parece – insuperáveis.  Sua consciência, seu modo de enxergar a literatura, certamente, o impediria de fazer o caminho inverso, de se colocar simplesmente, em uma torre de marfim.
Em muitos poemas de “A Rosa do Povo”, publicado em 1945, e em alguns ensaios/crônicas de “Confissões de Minas” é possível perceber diversas relações históricas como, por exemplo, as dos acontecimentos no âmbito global e particular, que afetam as duas formas literárias – prosa e poesia, bem como as das utopias comunistas, nos quais se acercavam muitos intelectuais engajados politicamente no período do estado novo. Assim, principalmente em “A rosa do Povo” há uma preocupação coletiva, como se destaca na seguinte inversão sintática: “Tal uma lâmina,/o povo, meu poema, te atravessa” (1995: 11), mas também nos dois livros articulam-se tempo, mundo e homens. São confissões que partem do “eu” de Minas para o mundo.
No poema “Carta a Stalingrado”, Drummond realiza um tipo de Ode à cidade, uma homenagem à sua resistência e acrescenta: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, desse modo, o verso se abre para a leitura do escritor/jornalista e da poesia que, neste contexto, é atravessada pelos fatos. O poema, também, refere-se às outras cidades, que foram assoladas pela destruição. A ruína e a morte também são tematizadas do mesmo modo como no poema “Visão 1944”, em que olhos não conseguem abarcar tanta destruição. A morte está num porto da Itália, nos homens que parte do Pará e do Quebec e aparece, também, na figura do muro branco à espera de judeus de barbas e roupas negras.
Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro – e o muro é branco.
                                                 (Andrade, 1995:173)

Já no poema “Versos à boca da noite” o tempo aparece logo na primeira estrofe de modo personificado e materializado corporalmente neste sujeito: “rugas, dentes, calva...” (1995:148). A presença do verbo “abater” acrescido da ruptura criada pelo enjambement demostra a violência aniquiladora deste tempo sobre este “eu”. O tempo a partir daí constrói as relações do passado e do presente ligados à juventude e à idade madura.
Alguns elementos também reaparecem em diversos momentos como a mão, os olhos, o relógio e as mudanças atmosféricas, o primeiro muitas vezes simbolizando o impedimento ou a ausência de ação, o segundo inserido no tópico da visão precária, o terceiro ligado à aniquilação do tempo e o quarto ligado às mudanças atmosféricas que virtualmente metaforizam as indecisões do sujeito poético.
  O sujeito do presente que está, digamos, na metade da vida, enxerga a impossibilidade de se recomeçar o dia. Após os aborrecimentos gerados através das experiências da solidão, da melancolia – amada e repelida –, das incertezas criadas a partir das divisões entre dois mares, duas mulheres e duas roupas, a figura da mão reaparece na oitava estrofe, mas não como a mão do tempo, e sim como a mão do sujeito despido de curiosidade de amor. Além disso, embora haja a recusa desse “eu” à plenitude, há também, simultaneamente, a rememoração – não nostálgica – e a aceitação – não resignada – dessa noite, dessa idade que não contém mais o furor dos vinte anos, mas que contém “um mergulho em piscina, sem esforço”, uma inteligência adquirida no universo.
Diversas relações podem ser demarcadas entre “A Rosa do Povo” e “Confissões de Minas”, são destaques: o tempo sob a forma de transição, de passagem, de acontecimento e de memória, a morte: sob a forma de cancelamento da vida e ruína dos homens e das cidades, o olhar em si: sob a forma de questionamento e ironia deste “eu” no mundo e o nascimento: sob a forma da utopia comunista e de renascimento da literatura.  
Por fim, estes livros destacam um momento de reflexão sob o tempo, mas antes de tudo através do olhar particular de quem os escreveu. Quando Carlos Drummond de Andrade em “Escrevo estas linhas” realiza as referências do período, o mundo já participara de muitas destruições e os regimes totalitários de Hitler e de Mussolini estavam em um começo de declínio. A batalha de Stalingrado foi um ponto-chave para a derrocada do regime nazista, assim, o autor enfatiza a necessidade de se incorporar o tempo na literatura, a necessidade de olhar além de si mesmo. A mesma ressalva é realizada em “Poesia do Tempo”, no qual o autor realiza críticas à poesia distanciada da vida ou como fuga da realidade.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 16. ed. Record, Rio de Janeiro: 1995.
________. Confissões de Minas.  Cosac Naify: São Paulo, 2011.