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Sobre o romance "Perto do coração selvagem"

 Perto do coração selvagem [1944] é “o romance de estreia”, da escritora Clarice Lispector que em torno de seus quase vinte anos é em vida e mais tarde considerada uma das escritoras mais importantes da literatura. Lispector chegou ao Brasil muito cedo, morou em Recife, depois no Rio de Janeiro, estudou e foi casada com um diplomata brasileiro, ao que a possibilitou muitas idas ao exterior Suíça, Itália entre outros lugares, teve dois filhos, escreveu vários romances e contos – escrevera a convite de jornais, era de personalidade introspectiva, à frente de sua época, ao mesmo modo que muitas escritoras brasileiras tais como Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, entre outras muito importantes.

 

Em seus contos, novelas e romances é notável uma linguagem irreverente ao modo de James Joyce, Virgínia Woolf, o fluxo de consciência [the stream of consciousness] de seus personagens. O texto de Clarice Lispector não se prende a gêneros bem definidos, escritora de contos, novelas que estão entre o romance e o conto: apresenta uma prosa poética.

A escritora consegue exatamente mostrar o que as personagens pensam, sendo mulheres ou homens. O leitor se pergunta quais as referências de leitura da autora. Em Perto do coração selvagem, a epígrafe inicial mostra sua linguagem hermética, cita o escritor muito conhecido Irlandês James Joyce que diz “Ele estava só. Estava abandonado, feliz perto do selvagem coraçãoda vida”, epígrafe que remete ao título de seu livro e ao fluxo de pensamento das personagens, com isso, durante a leitura os leitores se deparam com a corporeidade dos mesmos e com leituras e percepções diluídas de Spinoza e da música “estudo cromático de Bach”. Apesar de introspectiva, seu estilo de linguagem é muitas vezes irreverente, desconcertante suas narrativas se confundem com as experiências da autora, por isso, muitos notam, como “autobiografias não planejadas”, a estranheza. Falava de si ou não? Havia o que ela mesma nota, “transfiguração”. Seria o texto de Clarice a transfiguração da matéria bruta? “[…] nada existe que escape à transfiguração” (p. 180). Seria a autora Lídia, Joana ou Otávio? O leitor não consegue e não tem como saber.


A autora depura os acontecimentos de sua vida, diluída em símbolos. Sua narrativa se constrói tal como a engenhosidade da poesia. “Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio’” (Água viva, 1973, p.40). E bio é vida.


Se em Perto do coração Selvagem a “eternidade” para sua personagem não é mensurável, sequer divisível, assim não por quantidade, e sim por qualidade, sendo sucessão, talvez duração, ao que parece mostrar certa finitude do corpo e as relações do passado e do presente e futuro dos personagens. Onde estaria a eternidade? Descreve uma de suas personagens“[…] talvez num fim de uma tarde, num instante de amor […] (p. 193). Já no romance Água viva, por exemplo, uma prosa poética, “o instante é somente vida”. “E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.” (p. 8). A imagem do professor, a esposa algo que desconcerta, certo desarranjo tão diferente da imagem poética no romance posterior de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.


Os pensamentos, os fluxos de pensamento de “Otávio” entre Lídia e Joana fica entre seu sentimento de amor e desprezo, responsabilidade com a vinda de um filho, dúvidas e reflexões ao mesmo tempo agudeza do olhar masculino. A incompreensão do feminino e a corporeidade de ambas, sentimentos que voltam em tempo de criança, do passado para presente. “De profundis”. A mulher enquanto mistério. “Nunca penetrei no meu coração” (p. 151). A narrativa que volta da infância para a juventude e retorna, como algo cíclico. A descrição da vinda do filho “Falava das próprias dores e ela embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom – brilhante e misterioso como de uma mulher grávida.” (p. 99) Assim a feminilidade de Lídia e Joana eram descritas.


A sublimidade do mar, mar que parece personificado “o mar era muito”. E a incompreensão da palavra “nunca”, sequer masculino ou feminino. A epifania de suas personagens. O mistério do dicionário como achar o “i” depois do “l”, assim como retornar? A palavra Lalande que ao estranho explica: “Lalande é também mar de madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia […]”. São símbolos diversos que se apresentam em seu livro de estreia que figuram em seus livros posteriores: o relógio: “tac-tac-tac… O relógio acordou em tin-dlen sem poeira”/ “Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio”/ “sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite”.


Sobre o tempo da narração de Lispector não se dá numa sucessão de acontecimentos lineares, sua narrativa parece cíclica, vem da percepção de suas personagens e da linguagem. Em Perto do coração selvagem não se tem uma narrativa de acontecimentos lineares, às vezes nota-se lacunas em que o leitor retoma em momentos seguintes alguns dos acontecimentos, são analepses e prolepses, uma vez que se tem na narrativa que se inicia por descrições da infância questões do cotidiano depois retorna à juventude, a idade adulta dos mesmos e às vezes retoma acontecimentos do passado. Se mistura o “tempo do narrar” [Erzählzeit] com o “tempo narrado” [erzählte Zeit]. Benedito Nunes nota sobre o eterno na narrativa, na linguagem literária ao que às vezes se assemelha a narrativa de Lispector:


"É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro “De uma ‘infinita docilidade’, o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinitivamente ou de contraí-los num momento único, caso que se transforma no oposto do tempo,
figurando o intemporal e o eterno." (1988, p. 25)


Na narrativa de Clarice Lispector, nota-se o discurso indireto livre, próprio às narrativas modernas, a discursividade de sua narrativa coaduna o que se teria em separado o discurso direto da narrativa: quando se tem a fala direta das personagens, do discurso indireto quando o narrador por elas falam. Lispector mistura as falas das personagens (discurso direto) com seus pensamentos, fluxo de consciência em primeira pessoa e às vezes em terceira pessoa. É como se a autora abrisse o pensamento das personagens ao leitor. Cada um descrevendo as impressões da vida em primeira pessoa. O que a autora faz conforme comenta Benedito Nunes fundi o tempo da história ao da ficção com a da escrita.


REFERÊNCIAS


GOTLIB, Nádia Batela. Teoria do conto, São Paulo, ática, 1997.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, [1944] 1998.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. editora ática, 1988.


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