quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Um respiro

Crescem do coração das trevas cinzas e espessas montanhas

Partem do negrume dos asfaltos singelas mendigas de chinelo

Aparecem deslanchados nos quintais pequeninas cadelas como a Soneca

Serafins anestesiam prostitutas pobres 

Constantemente Botos semeiam anjos nas ruas

Luzes borradas em meio às telas da realidade nua

Púrpuras unhas arranham o céu de areia 

Saltam dos olhos dos bêbedos sangue e prata

Tranças de ferro em meio a comida

Cenas se misturam em noites loucas e frias

Amalgamados estão sob viadutos um turbilhão de vidas



domingo, 14 de julho de 2013

O Cosmopolitismo em Augusto de Campos e o poeta provençal Arnaut Daniel



A soma da sabedoria humana não está contida em nenhuma linguagem e nenhuma linguagem em particular é CAPAZ de exprimir todas as formas e graus da compreensão humana.
Ezra Pound (pág. 38: 1995)
É em muito a contribuição de Haroldo e Augusto de Campos para a literatura brasileira, contribuição essa que em grande parte está nas diversas traduções que os irmãos realizaram. E é a partir desse trabalho que a língua portuguesa possui uma visão de diversas obras e de escritores que fazem parte da literatura mundial. A partir do trecho acima, na qual Ezra Pound afirma que nenhuma linguagem é capaz de conter em si toda a sabedoria humana é entendido que o cosmopolitismo é imanente à literatura. Nessa direção, creio que o motivo disso está no fato da necessidade urgente da literatura de dizer e de tentar refletir fatos, sentimentos e reproduzir diferentes culturas. Trato aqui, não de um cosmopolitismo rígido e ideológico, mas sim daquele que se volta para as relações multiculturais, um cosmopolitismo do espaço: que valoriza os diversos lugares, paisagens e direitos de ir e vir; um cosmopolitismo do tempo: no qual escritores antigos se relacionam a escritores atuais e também, por que não a um cosmopolitismo linguístico, literário, no qual através de transcrições se é possível resgatar sentimentos esquecidos ou nomear/dizer o que em determinada língua não se pode ser dito.
Uma das importantes contribuições dos irmãos Campos é o trabalho realizado com a poesia provençal. O provençal é considerado por muitos filólogos e linguistas modernos como um dos dialetos dentro da língua occitana/ Langue d’oc, no qual se tem como figuras importantes os poetas Raimbaut e Arnaut Daniel. A partir disso e de algumas traduções realizadas por Ezra Pound, Augusto de Campos se interessou em dar continuidade nas traduções dessas poesias. Poesias essas, que nos sécs. XII/XIII retratavam a visão do amor livre e que nas palavras de Augusto pode ser lida como signo subversivo de ideologias mais generosas. Signo, que nesse sentido, foi de caminho contrário à sociedade patriarcal da época. Assim, os poetas são Antenas, à maneira de Pound, antenas de raça, ou melhor, a arte como radar cita McLuhan, poesia essa que se deu como a frente de seu tempo.
A partir da canção danielina, bem como através da tradução realizada por Augusto é possível perceber que as palavras bem amarradas e sons engendram um efeito melódico relacionado aos temas tratos por essa poesia. Um exemplo disso está na canção XIII, ER VEI VERMEILLS, VERTZ, BLAUS, BLANCS, CRUOCS, no qual a rima do primeiro verso/linha se repete em todas as primeiras linhas das outras estrofes/ coblas. Ou seja, neste poema, há o que Campos chama de coblas singulars. Outro aspecto importante são os jogos de palavras, as aliterações e as assonâncias criando assim o que Pound caracterizou como importante na poesia provençal, a melopeia.
           
Vermelho e verde e branco e blau,
Vergel, vau, monte e vale eu vejo,
a voz das aves voa e soa
em doce acordo, dia e tarde;
então meu ser quer que eu colora o canto
de uma flor cujo seja amor
grão, alegria, e olor de noigandres.*
                                                                      (pág. 111:1987)

Uma das sensações provocadas por esse amor é o cheiro que protege contra o tédio, enoi gandres, palavras que foram aglutinadas por Augusto, a partir da decomposição de Emil Lévy (ennui/tédio, gandres/proteger) para noigandres. O lirismo de Arnaut parte do plano formal e nos conduz ao encanto, que a mulher amada tem sobre seu cantor, cantor esse que não compreende a não comoção de Deus diante de seu abatimento causado pelo tempo, separador dos amantes. Nesse sentido, a figura feminina vale tão ou mais que os tesouros do Tigre e do Meandres, vale mais que as glorias de um imperador e é a matéria de música para o compositor. 
Quando Pound em o ABC da Literatura (tradução de Augusto de Campos) diz que Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e cai. O que posso pensar para este trabalho é que a literatura também é um meio de conservar, seja uma língua, um dialeto, uma visão de mundo. Assim, a cultura provençal em parte está conservada nas canções de Arnaut e de outros poetas do período. E quando Anthony Appiah usa a seguinte expressão: Numa única polis não há sabedoria, posso refletir essas palavras para leitores de literaturas e tradutores que buscam conhecimento em poesia provençal, ou em literaturas atuais de suas línguas nativas ou não, estabelecendo assim o seu próprio paideuma, ou o seu próprio cânone.




Referências

APPIAH, Kwame Anthony. Patriotas cosmopolitas. Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 13 n. 36. São Paulo: Anpocs, 1998.
CAMPOS, Augusto de. MAIS PROVENÇAIS. Companhia das Letras: São Paulo, 1987.
NUSSBAUM, Martha C. Patriotism and Cosmopolitanism. In: M. C. Nussbaum et al. For Love of Country? Boston: Beacon, 1996, reed. 2002; Patriotismo y cosmopolitismo. In: M. C. Nussbaum et al. Los límites del patriotismo. Barcelona: Paidós, 1999.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. Ed Cultrix: São Paulo, 1995.

sábado, 6 de julho de 2013

Álvares de Azevedo, Byron: cosmopolitismo e nacionalismo



Durante o romantismo realizado no Brasil, muitos poetas optavam por uma estética vinculada, aos dramas nacionais e alguns até acreditavam que para se consolidar a literatura brasileira era necessário tratar das paisagens locais. Ainda que Àlvares de Azevedo seja um poeta do período romântico da literatura brasileira, a temática de sua poesia não está vinculada àquela tentativa de desprendimento da literatura européia e de dar forma a uma identidade nacional, algo que aconteceu com os escritores categorizados como de primeira geração.
 Ao avaliar o opúsculo de Gonçalves de Magalhaens, no momento em que o autor fala Sobre a História da Literatura no Brasil fica evidente seu caráter de manifesto, ou melhor, o autor dá exemplos literários e históricos destinados a um fim, ou seja, o autor evidencia certo instinto oculto, que pensava ser necessário para a formação de uma literatura nacional. Para Gonçalves de Magalhaens, a paisagem brasileira seria a matéria de poesia necessária para despertar o espírito de uma literatura independente. No entanto, utilizando aqui o mesmo pensamento de Machado de Assis em o Instinto de Nacionalidade, obras como as de Byron e de Goethe, não deixaram de ser valiosas para suas respectivas nações só porque trataram de outras paisagens que não inglesa ou alemã.
Ainda sobre o ponto de vista nacionalista e partindo para um campo politico e filosófico, Martha Nussbaum em For love of Country faz uma dura crítica a respeito de um nacionalismo exacerbado, que substituí valores universais como a justiça e os direitos humanos por valores ligados a um ídolo colorido. o Ensaio de Nussbaum que foi realizado em 1994 e que ganha nova forma após os atentados de 11 de setembro, dá ênfase a uma politica do cosmopolitismo. Já o filosofo Appiah a partir de sua tradição familiar ressalta a necessidade de um patriotismo cosmopolita. Nesse sentindo, ao trazer os conceitos de nacionalismo e cosmopolitismo para o campo literário é nítido observar que autores como Byron e Álvares de Azevedo não detinham em suas obras preocupações nacionalistas e cosmopolitas. Apesar disso, é notável que Byron em seu modo de viver e em sua obra constrói uma personagem desgarrada de sua pátria/Albion,

Adeus ó terras da pátria,/que oculta o ceruleo mar,/Bramão os ventos e as vagas,/Oiço o alcião grasnar: Aquele sol que declina, Nós vamos acompanhando, Não só a ti, mas a ele, Feliz noite desejando. (1863:16)

A voz irônica do peregrino Childe Harold, demostra seu sentimento de exilio diante de uma pátria que não mais poderia o satisfazer. Também é notável, que Àlvares de Azevedo, leitor feroz da literatura europeia, utiliza-se de referências como Byron, Vitor Hugo, Shakespeare, Goethe e Musset, um exemplo disso é sua obra Lira dos vinte anos e o poema O Conde Lopo. Alem disso é possível identificar que Álvares fala da paisagem brasileira, como no poema Na minha terra, pois as palavras pinheiro, mangueira, rancho, viola, serra e laranjeira são típicas do Brasil, entretanto o autor cita também a Itália, portanto se esclarece que a terra desse eu lírico é uma terra que vai além das origens do autor, e está mais ligada à terra de ares góticos, melancólicos, imaginados e inscritos nas obras europeias.

Minha terra sombria és sempre bela,/Inda pálida vida a vida,/ Como o sono inocente da donzela, /No deserto dormida! (1996:16)

A meu ver, não há erro em ser patriota como Whitman cantando a América, Fernando Pessoa cantando a Portugal. O problema se dá, quando se passa por cima de tantos outros valores em nome de uma pátria. Portanto, creio que a poética de Lord Byron e de Álvares não possui uma preocupação direta em ser nacionalista e nem de ser cosmopolita. Contudo é inegável que ainda que o jovem Álvares não tenha viajado fisicamente à Europa, sua literatura revela um enorme conhecimento da cultura europeia e um manejo peculiar com as letras brasileiras. Assim tanto Byron, o romântico Inglês de uma personalidade excêntrica, quanto Álvares de Azevedo são cosmopolitas no sentindo de serem escritores, que de modos diferentes tiveram contato com culturas diversas que não a suas e que trataram de temáticas vinculadas ao amor, ao desejo, as traições, as ambições e as ânsias dos sujeitos errantes, temas esses que são universais.

Referências

APPIAH, Kwame Anthony. Patriotas cosmopolitas. Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 13 n. 36. São Paulo: Anpocs, 1998.
ASSIS, Machado de. Instinto de Nacionalidade. Publicado originalmente em O Novo Mundo 1873, Nova Aguiar, vol. III. Rio de Janeiro: 1994.
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Coleção (Poetas do Brasil)/ Acessado em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000021.pdf
MAGALHAENS, D. J. Gonçalves de. Opusculos: Historicos e Literarios. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier,1865.

NUSSBAUM, Martha C. Patriotism and Cosmopolitanism. In: M. C. Nussbaum et al. For Love of Country? Boston: Beacon, 1996, reed. 2002; Patriotismo y cosmopolitismo. In: M. C. Nussbaum et al. Los límites del patriotismo. Barcelona: Paidós, 1999.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Na estrada com Jack Kerouac e Walter Salles


A pé e com o coração iluminado, adentro a estrada aberta,
Saudável, livre, o mundo adiante de mim,
 a longa senda marrom em minha frente, conduzindo-me para onde
[quer que eu escolha.
A partir de agora não peço mais pela boa sorte, pois eu mesmo sou
[a boa sorte,
A partir de agora abandono as lamúrias, não mais procratismo, de
[nada mais necessito,
Estou farto de reclamações entre quatro paredes, bibliotecas, críticas
[conflituosas
Forte e satisfeito eu viajo pela estrada aberta.(...)



Jack Kerouac em 1951, a partir das viagens e situações vivenciadas que duraram aproximadamente sete anos, com seus amigos: Neal Cassady, Allen Ginsberg e Willian S. Burroughs, escreveu em poucas semanas o Romance que seria considerado anos mais tarde a Bíblia da juventude norte-americana. E mais do que isso, um símbolo da geração Beat. No entanto, o sucesso do livro não ocorreu tão rápido, o livro de Kerouac chegou a ser rejeitado por muitas editoras e revisado várias vezes, principalmente por ter utilizado em seu manuscrito o nome original de seus amigos. De qualquer forma nada conteve o sucesso da obra que acabou deslanchando na estrada literária.

No Brasil,  a primeira tradução do livro fora realizada por Eduardo Bueno e pela editora L&PM, que na década de 80 se deparou com a mesma efervescência da juventude norte-americana dos anos 60. Nesse contexto brasileiro, também foram traduzidos outras obras como Uivo de Allan Ginsberg, com tradução realizada por Cláudio Willer entre outras.

Aqui também é interessante ressaltar que em 1992, como cita Eduardo Bueno,
(...)
Francis Coppola (o produtor), Guns Van Sant (o diretor) e Johnny Depp (o ator) envolveram-se numa filmagem nunca concretizada do livro (...). Talvez o motivo pela não realização do filme, na época, se dê pelo enorme desafio de reproduzir tantas informações na linguagem cinematográfica. (12:2004).

A partir disso há de se avaliar que Walter Salles deu um grande passo a frente ao filmar Na Estrada.

O Livro

Sal Paradise, protagonista de On The Road em primeira pessoa narra suas experiências viscerais como um viajante entregue ao acaso. Inicialmente, a personagem de forma implícita expõe acontecimentos do passado como a morte de seu pai e uma separação conjugal, assim conduzindo seus leitores ao porvir de uma imensa highway. Estrada essa, que continha a presença de Dean Moriarty ao longo de quase toda a narrativa. Assim começa o livro, com as recordações de Paradise ao conhecer em New York/1947 Dean e sua namorada Marylou.

As primeiras impressões que o protagonista teve com relação a Dean, são muito importantes para o desenvolvimento do enredo. O amigo simbolizava uma juventude ativa, sem preocupações, sem preconceitos, uma vida plena de musicalidades e aventuras.
 Se para um deles as experiências eram compartilhadas através da escrita, para o outro expressão se dava através da corporeidade. Após a apresentação entre Dean e Carlo Marx e algumas perambulações entre as ruas, casas e bares de New York, na primavera de 47 os grupos se dispersaram e cansado de ficar em New York, Sal resolveu cair na estrada. Sozinho, com apenas 50 dólares no bolso e o desejo de ir ao Oeste americano, percorrera longos caminhos, e também conhecera muitas pessoas e paisagens desconhecidas.

Através de inúmeras caronas, perambulações entre trilhos de trens e muitas imagens seja de paisagens como a do rio Mississipi, das montanhas, seja de vagabundos, andarilhos, de hipsters e de caubóis, o protagonista seguia com a vontade de chegar ao Oeste, especificamente, em Denver para se juntar a todos os amigos. No entanto, mesmo em Denver ao passar algumas noites na casa de Chad King, não teve tanto contato como gostaria com Dean e Carlo Marx, por puro desacordo entre colegas.

Chad King, Tim Gray e Roland Major, junto com os Rawlins, estavam basicamente dispostos a ignorar Dean Moriarty e Carlo Marx. E eu estava bem no meio deste curioso confroto. (pp. 61:2004).

Após um período em Denver, algumas festas, conversas literárias com Carlo, Sal estava pronto para mais viagens. Saindo de Denver passando por Salt Lake City e mais alguns quilômetros se encontrava amparado na Califórnia e na casa de Remi e sua esposa Lee Ann. Nesse período, com ajuda de Remi conseguiu um trabalho de segurança e conviveu durante um tempo com o amigo e a esposa. Trabalhara, mandara dinheiro para sua tia (que no manuscrito é a mãe), presenciara muitas brigas entre o casal, sentira desejos pela esposa do amigo e também chegaram juntos a até passar algumas dificuldades e novamente partiu sem rumo.

Em um ônibus a caminho de LA, depois de algumas desventuras na estrada e se sentindo sozinho, Paradise conhece a jovem mexicana Terry e se apaixona. Talvez, seja este um dos momentos mais melancólicos do livro. O protagonista, um jovem escritor sem rumo, sem dinheiro se apaixona por uma jovem mulher pobre e com um filho. O narrador descreve as ruas de LA, com seus bares e a falta de camaradagem entre as pessoas. E acrescenta:

Todos os policiais de LA pareciam gigolôs atraentes, obviamente tinham vindo a LA tentar a sorte no cinema. Todo mundo tinha vindo tentar a sorte no cinema, até mesmo eu. Terry e eu finalmente fomos reduzidos a tentar conseguir um emprego em South Main Street entre balconistas vulgares (...) (117:2004).

Assim resolveram sair de LA e como estavam sem dinheiro decidiram ir para Bakersfield e trabalharam colhendo algodão. Por muitos dias Sal se sentia um camponês, estava com Terry e por instantes esquecera até mesmo de Dean. Mas ele sabia que não poderia ficar muito tempo levando uma vida tão diferente da sua e que Terry deveria ficar com sua família.

Olhei para o céu escuro e pedi a Deus por uma vida menos árdua e uma chance melhor para fazer algo por aquela gente que eu amava. Mas ninguém estava prestando atenção em mim lá em cima. (128:2004

Deixando Terry com sua família e sem lugar para ficar, novamente ele retorna a estrada, contudo, a estrada de volta para casa em New York.

Depois de 1 ano morando com sua mãe em New York e frequentando a Faculdade, Sal se depara com o amigo Dean pronto para novas viagens. A partir daí desde as experiências dos personagens, bem como o ritmo do livro se aceleram, como se o autor quisesse nos transmitir todas as loucuras e errâncias apresentadas ao longo da narrativa. As afinidades entre Sal Paradise e Dean Moriarty se acentuam ainda mais. São vários episódios de festas, ouvindo o bop alucinado e que ambos discutem sobre os artistas que tinham AQUILO, o Jazz se despontava e o ritmo dessa geração ia ao encontro da geração Beat.  

Um dos pontos que causaram polêmica no Romance são as cenas de sexo, no qual uma delas Marylou e Dean queriam que Sal dormisse com eles, uma cena a três, que causou um grande impacto no contexto pelo qual a obra foi lançada. Além das cenas homo afetivas, que talvez não foram compreendidas dentro da sociedade preconceituosa e conservadora, principalmente, a norte americana em meados dos anos 50.  Outros pontos frenéticos é a vida embaraçada de Dean, que se separa e se casa com várias mulheres ao longo do enredo e que também foi pai de quatro filhos.

Outra cena importante no livro são os momentos que os jovens passaram em Nova Orleans:

O ar era tão perfumado em Nova Orleans que parecia vir em echarpes macias; podia se sentir o cheiro do rio e sentir mesmo o cheiro das pessoas, e da lama e do melado, e todos os tipos de exalações tropicais com o nariz subitamente retirado dos gelos do inverno setentrional. (178:2004).

Nesse trecho e em muitas outras passagens, também é possível verificar as referências de muitas obras como nesse caso a Marcel Proust. Em muitos momentos do livro o autor recorre a recursos temporais, uma vez que a história foi escrita depois do vivido e em poucas semanas. Nesse sentido, o narrador usa da memória e nos conduz em muitos momentos a esperar os acontecimentos futuros, nos quais ele já tem conhecimento. Kerouac é capaz de reproduzir, com propriedade, através da memória o cheiro dos lugares.

            É também em Nova Orleans que os jovens passam dias na casa de Old Bull Lee e Jane Lee, foram momentos de muitas conversas e uso de drogas, Sal chegou a conhecer a o acumulador de Orgones de Bull, uma caixa no qual cabia um homem dentro, que poderia ficar sentado. Como Paradise diz era como uma estufa mística. Depois da casa de Bull, viajaram por muitos lugares e tiveram alguns desentendimentos: Dean resolveu abandonar Sal e Marylou em San Francisco. Novamente Sal se viu desolado e a companhia da garota não valeu muita coisa.

Certa noite Marylou desapareceu com a dona de uma boate. Eu a aguardava, como combinado, num umbral do outro lado da rua, na esquina da Larkin com a Geary, faminto, quando ela saiu do vestíbulo de um apartamento elegante junto com sua amiga, a dona da boate, e um velho seboso com um maço de notas. (215:2004)

Nesse momento, o narrador nos conta que perambulou pela cidade, sem dinheiro, catando lixo nas calçadas e com pensamentos budistas a respeito da estabilidade da Mente Essencial. Chegou a pensar que iria morrer. Sua sorte é que o amigo Dean resolveu voltar a San Francisco para buscá-lo e o encontrou passando fome em um hotel que Marylou o havia abandonado.

Muitos acontecimentos se sucederam após esses episódios e Dean e Sal se encontraram novamente após a primavera de 1949 e fizeram outras viagens, principalmente porque a mulher de Dean resolvera colocá-lo para fora de casa. Então os dois amigos voltaram para a balbúrdia, pensaram em até ir para a Itália, algo que não se concretizou. Para Paradise Ali estava um BEAT – a raiz, a alma da Beatitude. Assim, o que Dean representava era a geração Beat e essa era a alma da geração de Kerouac.

Foram dias de viagem pela América, com o bop despontando nos bares, os dois amigos não conseguiam ficar parados, tinham a necessidade de viver, ainda que fosse como loucos e resolveram ir para o leste sempre a procura ou vivendo o AQUILO.

(...) e AQUILO era nossa alegria excitada e derradeira, a alegria que tínhamos de falar e viver e que nos conduzia ao transe vazio que punha fim a todos os inumeráveis pormenores angélicos e turbulentos que haviam estado à espreita em nossas almas durante toda a nossa vida. (257:2004)

Os capítulos finais do livro, narra desde a saída do Estado norte-americano de San Antonio até a entrada ao México, o teor lírico no qual Kerouac descreve as pessoas do outro país chega a encantar os leitores. O narrador descreve desde a pobreza, a prostituição e a diferença dos lugares se comparados com o EUA até a sinceridade das pessoas, a humildade dos policiais, das mulheres e das crianças.

Essa era a incrível, desinibida e definitivamente selvagem cidade dos meigos lavradores indígenas que sabíamos que iriamos encontrar no fim da estrada. (365:2004)

Porém, como o México era para eles um lugar muito diferente, no fim da parte 4 do livro Paradise adoece, estava com Disenteria e fora largado por Dean em pleno México. Ao melhorar retorna para New York e posteriormente conhece Laura, no qual se casa. O fim de On the road e o último encontro entre os dois amigos se dá de forma melancólica, pois Paradise não pôde leva-lo a uma Opera que iria com Laura e o amigo Remi e assim vê o amigo pela última vez dobrando uma esquina de New York.

O Filme
            A adaptação do romance de Jack Kerouac em seu longa realizado por Walter Salles, que fora lançado em 2012 foi de grande impacto para o cinema mundial. A escolha da história, do elenco: que contou com a presença de Sam Riley (Sal Paradise / Jack Kerouac), Garrett Hedlund (Dean Moriarty/ Neal Cassady), Kristen Stewart (Marylou / Luanne Henderson), Alice Braga (Terry / Bea), Kirsten Dunst (Camille / Carolyn Cassady), Amy Adams, Tom Sturridge (Carlo Marx / Allen Ginsberg), Viggo Mortensen (Old Bull Lee / William S. Burroughs) entre outros, deu ao filme uma grande credibilidade. Nesse sentido, há de se concordar que o diretor acertou em muitos momentos com a realização do filme.

            Talvez, pelo grande desafio de adaptar para o cinema uma narrativa intensa, com a presença de muitas imagens, muitos personagens, com teor biográfico e digamos de origem norte-americana, Walter Salles quanto à linguagem cinematográfica, não utilizou muito da ousadia que poderia ter investido no filme. A narrativa do livro se constrói a partir do olhar de Sal Paradise, ou seja, a narrativa é criada em primeira pessoa. Essa construção não foi realizada por Walter Salles, uma vez que há cenas que o personagem não está e a câmera continua a captar o enredo. Um exemplo disso é a cena que na casa de Old Bull Lee, Marylou, Galatea e Jane Lee conversam sozinhas ao limpar o chão, ora, nessa cena, Sal não estava presente, nesse sentido, como poderíamos ver o que Paradise não vê?

Obviamente que como o próprio Pasolini afirma a subjetiva livre indireta não ocorre no cinema como na literatura, no qual o personagem pode contar sua história com uma interiorização absoluta. Pasolini também afirma ser o recurso da subjetiva livre indireta, mais ligada ao estilo do autor, para ele esse recurso se liga menos a língua e mais aos recursos estilísticos do cineasta. Entendo que em Na Estrada, Walter Salles utilizou um pouco de seu estilo talvez para dar ao filme um tom mais poético, porém, para aqueles que leram o livro e perceberam a linguagem espontânea rítmica de Kerouac sentiram, a partir do meio do filme, certa sensação de vazio. Além disso, um dos recursos bem utilizado por Walter Salles é quando no início temos a voz de Sal Paradise em off falando sobre seu pai e logo depois aparece o personagem com um close nas pernas andando em uma estrada de terra.

            Mesmo o cinema sendo uma arte assim como a literatura, ambos tem suas limitações que às vezes impedem a transposição de um para o outro, porque ambos, se comparados entre si, possuem distinções linguísticas e limitações de representação. Walter Salles, além de utilizar o livro publicado de Kerouac, também utilizou o manuscrito do autor e finalizou o filme com Paradise escrevendo enlouquecido suas experiências. Algumas modificações foram realizadas no roteiro do filme, talvez para dar seguimento e não causar tanta fragmentação. Mas para aqueles que assistiram ao filme se ter lido o livro, não puderam compreender bem o cerne da história. Além do filme de Salles há também o livro The Americans de Robert Frank, livro publicado no final dos anos 50 que muito se relaciona com as descrições de Kerouac. Cheio de imagens das lanchonetes americanas, caubóis e estradas.

            Quanto ao livro, que marcou a geração Beat, é impossível sair de sua leitura sem ter certo sentimento de aventurança pelas estradas do mundo. As imagens transpostas pelo escritor, assim como Goethe em seu romantismo descrevendo as paisagens, são imagens afetuosas sobre o México e as inúmeras cidades americanas. O mundo para Kerouac era esses lugares e essas pessoas.

(...) e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos (...) (25:2004)

 Assim como Whitman, Kerouac canta a América e se apaixona pelos loucos, assim como o cinema brasileiro.


Referências Bibliográficas
KEROUAC, Jack. On the road(Pé na Estrada). Tradução, introdução e posfácio Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2004.
PASOLINI, Pier Paolo. O cinema de poesia. In: Ciclo Pasolini anos 60. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. Tradução Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2005.
Filmografia
Na Estrada/On the road. Direção: Walter Salles. Brasil, 2012. Internet Download.

Pollyanna Nunes Ramalho  18/01/2013

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A eternidade


















Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Alma sentinela
Murmura teu rogo
De noite tão nula
E um dia de fogo.

A humanos sufrágios,
E impulsos comuns
Que então te avantajes
E voes segundo...

Pois que apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
Sem dizer-se: enfim.

Nada de esperança,
E nenhum oriétur.
Ciência em paciência,
Só o suplício é certo.

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Rimbaud
(Tradução: Ivo Barroso)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

"Eu" Augusto dos Anjos





Idealização da Humanidade Futura

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
__ Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais!

Não sei que livro, em letras garrafais
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

Augusto dos Anjos