sábado, 29 de dezembro de 2012

O poema

O poema é uma pedra no abismo,
O eco do poema desloca os perfis:
Para bem das águas e das almas
Assassinemos o poeta.

Mario Quintana (O aprendiz de feiticeiro)

Sempre

Jamais se saberá com que meticuloso cuidado
Veio o Todo e apagou os vestígios de Tudo
E
Quando nem mais suspiros havia
Ele surgiu de um salto
Vendendo súbitos espanadores de todas as cores!

Mario Quintana ( O aprendiz de feiticeiro)

O dia

O dia de lábios escorrendo luz
O dia está na metade da laranja
O dia sentado nu
Nem sente os pesados besouros
Nem repara que espécie de ser... ou deus... ou animal
                          [é esse que passa no frêmito da hora
Espiando o brotar dos seios.

Mario Quintana (O aprendiz de feiticeiro)

Lua perdida

Lua perdida
nos muitos cantos do mundo
assombrando os sonhos.

Às vezes adormecida
no rastro vermelho do sol.

Junto  com a trama
secreta do destino
acorda seu nome
acorda também seus pássaros
e à noite seus mistérios.

Pollyanna Nunes Ramalho 2008

terça-feira, 13 de novembro de 2012



Escritores da Liberdade (Freedom Writers, EUA 2007) é um daqueles filmes que bem representa a realidade contemporânea das escolas e das relações entre professores e alunos. A partir disso, pretendo relacionar o filme com algumas assertivas de Inês Assunção de Castro no artigo Da Condição Docente: Primeiras Aproximações Teóricas.

O filme conta a história de uma professora recém-formada, Erin Gruwell (Hilary Swank), que tem o interesse de lecionar Língua Inglesa, mas que não imaginava os desafios que estavam por vir. O enredo, inicialmente, apresenta desde questões burocráticas que fazem parte da vida dos professores, como exemplo a admissão e os primeiros contatos com a diretoria da escola até as relações com os alunos.

Também, é interessante observar as diferenças sociais entre os professores e alunos. Se Erin, formada em Direito, como outros docentes e membros da diretoria da escola, tiveram acesso a uma educação que lhes deram uma formação e uma profissão, os alunos, neste caso, encontram-se em uma situação totalmente contrária. Envolvidos em crimes como homicídios e tráfico de drogas, pertencentes às tribos e sem estrutura familiar, não tinham os mesmos acessos econômicos e intelectuais de seus professores. Nesse sentido, em muitos momentos do filme é possível enxergar os conflitos e as dificuldades que os alunos tinham de se relacionar com os professores.

O filme deixa bem evidente a diferenciação que professores e como maior exemplo aqui, a diretora Margaret Campbell, interpretada por Imelda Staunton, fazem de alunos que consideram “difíceis”. Quando Erin recorre à escola para conseguir livros que estão de acordo com a faixa etária de seus alunos é perceptível o tratamento preconceituoso por parte da diretora que não libera os livros dizendo que àqueles alunos não saberiam manuseá-los. Dessa forma, as relações de alteridade (dentro e fora da escola sejam entre professores ou professor e aluno) são marcadas por efervescentes conflitos que impedem o desenvolvimento pedagógico, bem como o convívio político nas instituições educacionais.

Outro momento do filme muito interessante é quando a protagonista Erin percebe que está acontecendo um tipo de “brincadeira de mau gosto”, ou melhor, preconceituosa dentro de sala de aula. A partir daí, a personagem trava uma conversa com os alunos acerca do que foi, digamos, a maior “gangue” do mundo. Para interagir com os alunos, ela os esclarece, utilizando termos que fazem parte do universo dos alunos, o que foi o holocausto. Esse diálogo com o sistema totalitário alemão no filme, faz muito sentido com questões vivenciadas atualmente. Um exemplo disso são as divisões étnicas, culturais, econômicas que mesmo após a queda do muro de Berlim e o registro histórico que ressalta o valor absurdo, ainda ocorrem dentro e fora das escolas.

Hoje, sejam nos EUA ou em vários países ocidentais, muitos problemas enfrentados partem da falta de reconhecimento, por parte de governantes e de membros de escolas, de que lidar com alunos/pessoas, independe de qual condição econômica ou étnica que esse se insere. Ressalvo aqui, que independe no sentido de tratamento, por exemplo, a cor de pele, ou a classe social de um aluno não pode ser critério de avaliação e diferenciação. Os mesmos direitos de uns são os direitos de outros. No entanto, países como o Brasil que têm um baixo índice de desenvolvimento de alunos que possuem cor negra ou parda, necessitam com urgência criar medidas que iguale a posição de negros dentro de uma sociedade que mais do que nunca exige um sujeito pensante.

Tanto Freedom Writers quanto outros filmes como Dead Poets Society (A sociedade dos poetas mortos), a versão americana The Wave (1981) e alemã Die Welle (2007-2008) baseadas na história The Third Wave/A Terceira Onda do professor Ron Jones e também To Sir, with love (Ao meu mestre, com carinho-1967), mostram algumas questões de autoritarismo dentro das escolas que em muito se parecem com o pensamento nazista alemão. Mas, além disso, esses filmes revelam a carência das instituições de ensino e das sociedades de dar vozes aos sujeitos que nelas convivem (no
sentido de Bakhtin) e de perceberem que elas são espaços policêntricos nos quais estão engendradas as relações humanas.

Segundo Teixeira (2007:433),

Passando a outro dos atributos que singularizam a relação docente/discente frente às demais relações sociais, tem-se a dimensão do cuidar. Do cuidado de si e do outro. Do zelo com os processos educativos, com os percursos e dinâmicas da formação humana, com as dinâmicas, conteúdos e formas de construção do conhecimento e inserção na cultura, traçados em que a dimensão política se reitera na docência. O cuidado de si e do outro é político. O pessoal é político, como já foi dito.


Nesse sentido, a de se concordar com a autora que condição docente é da ordem do político, não a conotação puramente vinda da polis grega (já que os escravos sustentavam o sistema político), mas sim a conotação que atualmente deveria ser implantada, a de verdadeiro comprometimento coletivo com preocupações que perpassam a tranquilidade, a melhoria, a condição humana (no sentido de Hannah Arendt) de si e do outro. Assim a de se concordar também com a epígrafe do artigo em que Texeira ressalta as falas de Clarice, de que nem tudo o que se faz, como melhor exemplo aqui o professor, resulta numa realização. Talvez o maior papel do professor e de membros das escolas não seja a total realização, ou sucesso pessoal  em sala de aula, imediatos, mas sim o simples toque de sensibilidade, o respeito que seja suficiente para dar conta das necessidades urgentes e básicas do ser humano.

*Pollyanna Nunes Ramalho




TEXEIRA, Inês Assunção de Castro. Da Condição Docente: Primeiras Aproximações. Educ. Soc., Campinas, vol. 28 n.99, p. 426-443, maio/ago., 2007 Disponível em . Escritores da Liberdade (Freedom Writers, EUA, 2007).


CASTRO, Amélia Domingues de. A trajetória histórica da Didática, Série Idéias n. 11, São Paulo, FDE, 1991.

SOARES, Magda B. Didática: uma disciplina em busca de sua identidade. ANDE São Paulo, 1985.


Múltiplas são as teorias e as tendências pedagógicas que perpassam a história. No entanto, a meu ver, poucas mudanças foram realizadas quando se pensa na realidade docente. Talvez, um dos motivos que dificulta essa prática docente é o não esclarecimento da Didática como disciplina substancial na formação de professores, bem como no desenvolvimento do discente e da comunidade escolar como um todo.
Em “A Trajetória Histórica da Didática”, Amélia Domingues de Castro traça o percurso do campo de estudos da Didática desde o século XVII até a atualidade. Nesse sentido, a autora pontua os objetos de estudo desse campo ao longo do tempo. Se inicialmente, tem - se por Comênio e Ratíquio a ideia de uma nova disciplina como “Arte de ensinar tudo a todos” baseado por ideais religiosos, posteriormente, tem - se o surgimento da linha “metodológica” e da linha de Rousseau. Sendo a primeira voltada para os processos objetivos e externos ao sujeito e a segunda que leva em consideração à criança/ aprendiz voltando assim para suas necessidades. Além dessas linhas, Herbart surge no século XIX defendendo a concepção de “Educação pela instrução”.
Castro também trata em seu ensaio a respeito da “Escola Nova” movimento que apresenta concepções teóricas da necessidade de se atender “às condições da infância”, utilizando de certo modo de “formas consagradas” e de um discurso de liberdade. A escritora também ressalta que muitas dessas escolas nos EUA e na Europa e seus internatos só eram acessíveis para a burguesia do século XX. De qualquer modo, com todas essas concepções o interesse de Castro não é a de dar pronto e acabado o que seria o objeto de estudo desse campo aqui tratado. A autora, apenas nos incita a uma reflexão de que o foco é um ensino que seja capaz de abarcar o desenvolvimento cognitivo, mas que também envolva as relações humanas de afetividade.
Numa perspectiva um pouco diferenciada de Castro, Magda Soares apresenta como objeto de estudo a “aula”. Para a autora, o foco da Didática tem que estar voltado, antes de tudo, para a sala de aula, porque é nesse espaço de trocas entre Professor e aluno que pode surgir questões inesperadas, nos quais os métodos não sejam capazes de solucionar. O que ambas as escritoras ressaltam em comum é a dificuldade de dissociar o conteúdo ensinado com o objeto da própria didática. Portanto, é visível a complexidade de se estabelecer métodos para Didática, uma vez que ela é interdisciplinar.  Mas apesar disso, é importante que para os professores, as instituições e a sociedade esteja claro a importância de se levar em consideração tanto a relação em sala de aula, como também considerar as especificidades sociais e econômicas de cada aluno no processo de ensino-aprendizagem.  E, mais do que apontar o objeto de estudo de uma determinada disciplina, como no caso a Didática, o professor além de respeitar os pontos de vista dos discentes e de conhecer determinado conteúdo, ele tem que ser capaz de transmiti-

 *Pollyanna Nunes Ramalho

 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Resenha do capítulo: “Penser/Classer” de Geoges Perec

Neste trabalho, apresento, uma resenha sobre o capítulo XIII do livro “Pensar/Clasificar” (título traduzido do original em Francês “Penser/Classer”), de Georges Perec. Capítulo no qual, o autor, ao mesmo tempo em que se detém sobre reflexões acerca do (in) classificável, ou seja, da ideia de uma ordem ou desordem, do que se é possível ou não nomear, dizer, listar e numerar. Lança mão de categorias, como o alfabeto, para mostrar sua arbitrariedade.

Passando à estruturação do artigo, o autor divide cada subtítulo com as letras do alfabeto francês. E o inicia com a letra D, fugindo assim da ordenação comum do alfabeto. Desse modo, o autor nos deixa claro que Pensar é ir além de simplesmente categorizar ou classificar.

Em Sumario, primeiro subtítulo do texto, e que normalmente temos uma introdução do tema tratado, Perec engloba os 26 subtítulos:



Sumario - Métodos - Preguntas - Ejercicios de vocabulário - El mundo como rompecabezas - Utopías - Veinte mil leguas – de viaje submarino – Razón y pensamento – los esquimales – La Exposición Universal – El alfabeto – Las clasificaciones – las jerarquías -  Cómo classifico – Borges y los chinos – Sei Shônagon – Las inefables alegrias de la enumeración – El livro dos récords – Bajeza e inferioridade – El dicionário – Jean Tardieu – Cómo pienso – Aforismos – “Em uma red de líneas entrecruzadas” – Vários - ?(1986: 108)

Cada subtítulo é tratado, separadamente, incluindo assim, o próprio Sumário que por definição é um Résumé.

            A partir de Métodos, o autor nos dá uma explicação de seu desejo de reunir em seu artigo, elementos metodológicos.  Mas, além disso, deixa clara a impossibilidade de organizá-los. E de algum modo, vincula essa impossibilidade com o pensamento e com a ordenação, já que aquele é fragmentado e disperso e este é arbitrário.

            Na categoria “N”, Perrec lança mão de perguntas nas quais as respostas se colocam num plano relativo. A meu ver, ao perguntar o significado da barra de fração presente entre Classificar e Pensar, nos deixa clara a impossibilidade de dá uma resposta que integre um único significado, como por exemplo, em uma pergunta retórica que toma o caminho inverso. Talvez, não seria demais dizer que a barra dê ao classificar a função de divisor do pensamento.

            Há em nós uma necessidade de ordenação do mundo, desse mundo caduco, caótico, como quebra-cabeças, que se coloca, para nós, muitas vezes, como sem ordenação, sem compreensão. Como quebra-cabeças no sentido de complicado e múltiplo. E não obstante a isso, de combinar as peças para tentar formar um todo, um conceito, uma exatidão, e em consonância com o autor, as classificações, por completo, não funcionam, nunca funcionou e nunca funcionará. Nesse mesmo sentido, o autor também, não acredita nas Utopias, porque elas simplesmente, não abrem espaço para o azar, o diverso, ou seja, elas idealizam um porvir, inexiste, e criam planos compactos, fechados como maneira de justificar suas ideologias e que não abrem espaço para o novo, o criativo, para esse azar.

            No subtítulo, Veinte mil leguas de viaje submarinos, Perrec estabelece em três proposições, como num silogismo, um raciocínio que como uma brincadeira, além de incluir dois personagens da obra de Julio Verne, Conseil e Ned Land, conclui que Conseil estabelece el catálogo razonado de los peces que Ned Land examina. O que nos leva a pensar, de acordo com a obra, que Conseil confia em Ned Land, já que a catalogação daquele se baseia na afirmação deste.

            Em Razón y pensamento, Perec questiona as definições presentes nos dicionários sobre a razão e o pensamento. Também, acrescenta a adjetivação, como uma maneira presente na língua para estabelecer uma relação de diferenças entre essas duas palavras. Para ele, o pensamento está ligado ao profundo, à emoção, ao trivial. Já a razão, além de ter essas mesmas características do pensamento, como diferença, se liga mais ao social e ao Estado.

            No segmento sobre Os Esquimós, o autor trata das formas que cada cultura apreende o mundo. Dá exemplo, de como essa cultura tem diferentes formas de nomear gelo. Também, cita os franceses e os ingleses que possuem sete ou mais formas de nomear algo como rua. Ou seja, cada cultura apresenta diversas formas de referenciar o mundo de acordo com suas percepções e necessidades.

            A partir da Exposição Universal de 1900, e da descrição dos critérios que o administrador geral da exposição, senhor Picard atribuía as classificações, Perec nos mostra as contradições que, talvez deliberadas, causam impacto, já que nem todos os objetos médicos tinham uma ordenação ou uma explicação clara, como o administrador dizia.

            Borges, como ressalta o autor, também percebe a arbitrariedade das classificações, porque em seu livro, Outras inquisiciones traz uma classificação desconcertante que inclui o ETC, fora da ordem esperada e categorias que, convencionalmente, não são atribuídas aos animais.

            Em o Alfabeto, e como já foi dito inicialmente, há um tratamento sobre a ordenação e sobre a arbitrariedade, a inexpressividade e a neutralidade do alfabeto. Nesse sentido, podemos inferir que o alfabeto, nos termos de Perec, é arbitrário, uma vez que não há uma ordenação fixa, o que existe são convenções que determinam as possibilidades de uma certa ordem. Já  inexpressividade, no sentido de que as letras não carregam em si, um sentido e neutralidade, uma vez que, qualquer sentido transmitido a elas podem integrar uma ideologia, ou uma intenção.

            Finalmente, como em outros segmentos do artigo, percebemos que muitas classificações são estabelecidas por convenções e que não podem ser utilizadas como única forma de veicular o pensamento. Mas como o próprio autor trata em algumas categorias do artigo, há uma necessidade indescritível de nomear e ordenar o mundo/a vida, porque precisamos – ainda que isso seja limitante – de alguma organização. Por isso listamos, enumeramos, uma vez que a memória se vincula diretamente com o esquecimento. A simplificação, apesar de ser muitas vezes ser pobre, é menos esquecida, quem sabe por ocupar menos espaço. Portanto, as classificações são necessárias, porém mais importante ainda é o pensamento, lembrando que esse é simplesmente intercambiável com a liberdade. Sem ela não há pensamento.

Pollyanna Nunes Ramalho



    



terça-feira, 10 de abril de 2012

Linhas talhadas


Os pés pisam os caminhos.

Sobre a textura da terra,

da areia,

da grama,

da brita,

do asfalto,

dos céus  e

dos infernos.

E os caminhos?

 São criados por puro Acaso?

Ou o corte das águas e as trilhas marcadas

são realizadas por pura ação do tempo?

A borra do café e as linhas das mãos

são como os caminhos.

Os caminhos guardam mistério,

São in (felizes) e in (humanos).
São fluidos densos de sensações

em constante transformação

talhando o tempo e o espaço.



Pollyanna Nunes Ramalho 10/04/12

sexta-feira, 2 de março de 2012

As cidades e os símbolos 2

Da cidade de Zirma, os viajantes retornam com memórias 
bastante diferentes: um negro cego que grita na multidão, um 
louco debruçado na cornija de um arranha-céu, uma moça que 
passeia com um puma na coleira. Na realidade, muitos dos ce-
gos que batem as bengalas nas calçadas de Zirma são negros, 
em cada arranha-céu há alguém que enlouquece, todos os lou-
cos passam horas nas cornijas, não há puma que não seja cria-
do pelo capricho de uma moça. A cidade é redundante: repete-
se para fixar alguma imagem na mente.

Também retorno de Zirma: minha memória contém dirigi-
veis que voam em todas as direções à altura das janela, ruas
de lojas em que se desenham tatuagens na pele dos marinhei-
ros, trens subterrâneos apinhados de mulheres obesas entre-
gues ao mormaço. Meus companheiros de viagem, por sua vez,
juram ter visto somente um dirigível flutuar entre os pináculos
da cidade, somente um tatuador dispor agulhas e tintas e dese-
nhos perfurados sobre a sua mesa, somente uma mulher-ca
nhão ventilar-se sobre a plataforma de um vagão. A memória é
reduntante: repete os símbolos para que a cidade comece a
existir.




Italo Calvino ( As cidades invisíveis)


sexta-feira, 27 de janeiro de 2012


" (...)  Admitirá que segredos iguais se cultivam na grande cidade e, mesmo, que uma cidade, exclusão feita de prédios, veículos, objetos e outros símbolos imediatos, não é mais que a conjugação de inúmeros segredos dessa ordem, idênticos e incomunicáveis entre sí, e pressenrtidos somente por poesia ou amor, que é poesia sem necessidade de verso. (...)"




Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

As cidades e a memória 3


Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais laminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da canhoneira que surge inesperadamente  atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas redes de pescae os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre molhe.

 A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. 


Italo Calvino( As cidades Invisíveis – Tradução Diogo Mainardi)

As cidades e a memória 1


Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh! é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.

Italo Calvino( As cidades Invisíveis – Tradução Diogo Mainardi)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A chave

Agora era tarde para dizer que não ia, agora era tarde. Deixara que as coisas se adiantassem muito, se adiantassem demais. E então? Então teria que trocar a paz do pijama pelo colarinho apertado, o calor das cobertas pela noite gelada, como nos últimos tempos as noites andavam geladas! País tropical ... Tropical, onde? " Foi-se o tempo", resmungou em meio de um bocejo. Devia haver no inferno o círculo social, aparentemente o mais suportável de todos, mas só na aparência. Homens e mulheres com roupa de festa, andando de um lado para outro, falando, andando, falando, exaustos e sem poder descansar numa cadeira, bêbados de sono e sem poder dormir, os olhos abertos, a boca aberta, sorrindo, sorrindo ... O círculo dos superficiais, dos engravatados, embotinados, condenados a ouvir e a dizer besteiras por toda a eternidade. "Amém", sussurrou distraidamente. Cerrou os olhos. Cerrou a boca. Mas por que essa festa? "Estou exausto,  compreende? Exausto!", quis gritar, enquanto batia com os punhos fechados na almofada da poltrona. Voltou para a mulher o olhar suplicante, " Então não compreende? Exausto... " 
 — Tom! Que tal se você já começasse a se vestir?
            Claro que não compreendia nada, a cretina. Festa, festa, festa! O dia inteiro e a noite inteira era só festa, era vestir e desvestir para se vestir em seguida, " Depressa que estamos atrasados!" . Atrasados... Ter que se barbear , escolher a gravata, encolher a barriga, obrigando-a a se refigiar no primeiro espaço vago, aquela pobre, aquela miserável barriga que não tinha nunca o direito de ficar à vontade, nem isso! E armar a expressão cordial e ficar sorrindo até às cinco da manhã, os olhos escancarados, aqueles olhos mortos de sono! Mas por quê? Cadelas. Não passavam todas de umas grandes cadelas inventando jantar após jantar para se exibirem. 
 — Feito putas.
— Que foi que você disse, Tom? — perguntou a mulher entrando no quarto. Vestia apenas uma ligeira combinação de seda preta, mais renda do que seda. — Deu agora para falar sozinho?
Teve um sorriso. Mas assim que a mulher desviou o olhar, sua fisionomia ficou novamente pesada. Recostou a cabeça na poltrona, relaxou os músculos. E bocejou, distendo as pernas. Se pudesse dormir ao menos aquela noite, enfiar-se na cama com uma botija, uma delícia de botija, criando assim aquela atmosfera terna entre seu corpo e as cobertas... Ô! a melhor coisa do mundo era mesmo dormir, afundar como uma âncora na escuridão, afundar até ser a própria escuridão, mais nada. Antes, o copo de leite quente, bastante açúcar.
— Li numa revista que as mulheres que não dormem no mínimo dez hora por noite acabam com celulite antes dos trinta anos.
            Ela escovava os cabelos. Deteve a escova no ar, abriu a cortina espessa da cabeleira e espiou. Tirou um fio de cabelo da escova. Deixou- o cair.
— Celulite?
— Foi o que eu li.
— Bobagem! Depois, isso não me atinge, tenho a carne duríssima, olha aí — acrescentou ela, estendendo a perna nua até a poltrona. — Pegue para ver... Tem mulheres que a carne é mole que nem manteiga, mas a minha parece madeira, olha aí!
Ele tocou com as pontas dos dedos na longa perna bronzeada. Concordou, afetando espanto. E voltou para a janela o olhar enevoado. A quantidade de homens que daria tudo só para ver aquelas pernas. As famosas pernas. Besteira, onda. Baixou o olhar para os próprios pés. Com aquelas meias, pareciam pés de um rapaz, ela gostava das cores fortes. Francisca preferia cores modestas, mas Magô era jovem e os jovens gostam das cores, principalmente os jovens que vivem em companhia de velhos. E que desejam disfarçar esses velhos sob artifícios ingênuos como meias de cores berrantes, camisas esportivas, gravatas alegres, alegria, meus velhinhos, alegria! Dia virá em que ela vai querer que eu pinte o cabelo.
— Mas por que esse jantar agora?
— Ora, por quê! Acho que a Renata quer exibir o nariz novo, ela está de nariz novo, você já viu?
— Já. Ficou pavorosa.
— Você acha mesmo? — espantou-se Magô. Teve um risinho. — O médico cortou demais, foi isso.
— Não sei por que tanto jantar sem motivo nenhum.
— Mas precisa haver motivo especial para um jantar? — perguntou ela inclinando-se. Recomeçou a escovar vigorosamente os cabelos. — E depois, estamos disponíveis, não estamos?
Disponíveis. E como se exprimia bem, a sonsa. Contudo, há alguns anos, que enternecedor vê-la roendo as unhas quando se intimidava. Ou morder o lábio quando não sabia o que dizer. E nunca sabia o que dizer. “Vai desabrochar nas minhas mãos”, pensou emocionado até às lágrimas. Desabrochara, sem dúvida. Lançou-lhe um olhar. “Mas não precisava ter desabrochado tanto assim.”
Com um gesto lento, abotoou a gola do pijama. Levantou os ombros.
— Como esfriou.
Ela atirou a cabeleira para trás. Passou creme nas pernas, nos pés. Em seguida, devagar, voluptuosamente, esfregou as solas dos pés no tapete.
— Sabe que não sinto frio? Já estamos no inverno?
— Em pleno.
— Pois não sinto frio nenhum.
— Acredito — murmurou ele seguindo-a com olhar.
            Descalça, seminua e radiosa como se estivesse debaixo do sol. Tanta energia, meu Deus. Havia nela energia demais, em excesso, ai! a exuberância dos animais jovens, cabelos demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos até quando respiravam. Podia quebrar uma perna. Mas não quebrava, naquela idade os ossos deviam ser de aço. Bocejou.
            Ela agora passava creme no rosto, podia ver-lhe os dedos untados indo e vindo em movimentos circulares. Não precisava dormir? Não , não precisava e quando dormia, acordava impaciente, aflita por recuperar o tempo desperdiçado no sono. A perna quebrada seria uma solução...
— Tom querido, você está cochilando! Quer um drinque para animar?
            Ele escondeu as mãos nos bolsos do pijama. Abriu com esforço os olhos que lacrimejavam. “Não quero beber, quero dormir!”, teve vontade de gritar. Sorriu com doçura.
— Não, Magô, hoje não quero beber nada.
— Se você tomasse um drinque, aposto que se animaria!
— Mas estou animadíssimo...
Ela despejou água – de – colônia nas mãos. Abanou-as em seguida para secá-las. “Sabe que estou olhando e fica então  a se exibir”, pensou. “ Uma exibicionista. Se soubesse a data da morte, doaria depressa o esqueleto à Faculdade de Medicina, para continuar ...”
— Lasquei duas unhas — lamentou ela inclinando-se para calçar as meias. — E não me lembro onde foi.
            Fechou os olhos. As unhas de Francisca eram curtas, unhas de mãos eficientes, com uma discreta camada de esmalte incolor. Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes. Depois foram os cabelos. Podia ter reagido . Não reagiu. Parecia mesmo satisfeita em se entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou. Gostava de jogar paciência, as mãos muito brancas deslizando pelo baralho. A vitrola ligada, discos próprios dos programas da saudade. “Mas, Francisca, que horror, esse samba é antiqüíssimo, você tem que ouvir coisas novas! “ Ela sacudia a cabeça, “ Não quero, deixa eu com minhas músicas, essas outras me atordoam demais !” Tardes de Lindoia.  Os jardins, os copinhos, “ Esta fonte é excelente para reumatismo ...”.
— Tom, que tal?
Abriu os olhos num estremecimento.
— O quê?!
— Minha peruca! — exclamou Magô contornando com as mãos os cabelos. A franja comprida ameaçava entrar-lhe pelos olhos bistrados. — Você gosta?
— Mas por que peruca? Você tem tanto cabelo, menina.
— Ora, está na moda. E posso variar de penteado, fica fácil.
            Molemente ele estendeu o braço até a mesa de cabeceira. Apanhou a caixa de cigarros. Estava vazia. Fechou-a. Melhor, assim fumaria menos. “Na sua idade”, começara o médico na última consulta.
            Na sua idade. Inútil esquecer essa idade porque as pessoas em redor não esqueciam, há dez anos o pai de Magô já viera com isso embora não tivesse coragem de completar a frase. “ Na sua idade...” Ela também estava na sala, fingindo ler uma daquelas infames revistinhas de amor. “ Que é que tem na minha idade?”, provocara-o. O homem entrelaçou no ventre as mãos nodosas. As unhas eram pretas. “ O caso é que minha filha só tem dezoito anos e o senhor tem quarenta e nove, a diferença é muito grande”, ponderara, coçando a cabeça com os dedos em garra, exatamente como um macaco se coçaria. “Hoje não soma tanto. Mas daqui a dez anos como vai ser?” Ele então apanhou a capa. O chapéu. Abriu a porta e teve aquele gesto dramático: “ Daqui a dez anos o problema de ser corno ou não será um problema exclusivamente meu!”.
— Será que o Fernando vai também?
— O Freddy? Não tenho a menor idéia. Por quê?
E já tinha apelido, pilantra. Freddy.
— Por que Freddy? Por que isso?
— Mas todo mundo só chama ele de Freddy!
Todo mundo era ela. Gostava de pôr apelidos, vinha logo com aquelas intimidades.
— Não entendo como um tipo desses faz sucesso com as mulheres. Analfabeto, gigolô...
 — Gigolô?
— É o que corre por aí.
— Ah, Tom não posso acreditar!
— Se não é, tem cara. Um pilantra de marca fazendo blu-blu-blu naquele violãozinho.
Pensativamente ela caçou os sapatos.
— Tem uma voz linda.
— Voz linda, onde? Uma voz de mosquito, a gente precisa ficar do lado para poder ouvir alguma coisa. Afeminado...
            Afeminado ou efeminado? Bocejou. Enfim, uma besta quadrada. E aquelas idiotas babando de maravilhamento. Tinha juventude, mais nada. Crispou os lábios. Tinha juventude. “Ju-vem-tu-de...”, murmurou voltando o olhar mortiço em direção ao espelho. Ela adoraa espelhos, dezenas de espelhos por toda a casa. Aquele ali então era o pior, aquele que apanhava o corpo inteiro, sem deixar escapar nada. Com ele aprendera que envelhecer é ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.
  — Mas, Tom, você não vai mesmo se vestir? Quase nove horas!
— Fico pronto num instante, enquanto você se pinta dá tempo de sobra.
— E a barba? Não vai fazer?
— Mas é preciso? — gemeu passando a mão no queixo.
— Já fiz a barba hoje, minha pele está ficando escalavrada de tanta gilete.
— Então vá com essa cara de misericórdia mesmo! Já disse, Tom, já disse que você fica abatidíssimo com a barba crescida. Parece um velho.
— Eu sou velho.
— Ah, lindinho, não fale assim, vamos, levanta, vai fazer sua barbinha — pediu ela acariciando-lhe a cabeça.
— Não.
— Nunca vi tamanha má vontade, francamente!
— Fazer o quê nesse jantar, me responda depressa.
— Comer, ora...
— Mas se não posso comer nada, tenho o regime. O que preciso é de dormir, dormir!
— Pois durma!
Encarou-a. Era o que ele queria.
— Ainda vou ficar pronto antes de você — ameaçou, apoiando as mãos na poltrona.
— Chegou a se levantar. E deixou-se cair novamente. Fechou os olhos. Bocejou. Contaria até cinco e então se levantaria como um raio. Até dez... Esfregou os olhos.
— Meu Deus.
— Está com alguma dor, Tom?
Lançou-lhe um olhar demorado.
— Você está linda?!
Sorria ainda. Elas negavam sempre, fazia parte do jogo. Francisca era o oposto e contudo tivera aquela mesma espressão a última vez em que lhe dissera isso, “ Francisquinha, você está linda”. Ela então inclinara a cabeça para o ombro num muxoxo: “Ah, Tomás, eu? Linda?...”. Não deixou que ela proseguisse negando: “Linda, sim, quando você se enfeita um pouco fica uma beleza, você precisa ser mais vaidosa, querida. Veja as outras mulheres em seu redor!”. Ela voltara a colocar os óculos. “Mas na minha idade, Tomás...”
Aquela obsessão de idade. Porque falava tanto em idade? Chegava ser irritante às vezes. “Também tenho cinquenta anos, como você, não tenho? Por acaso vou agora cobrir a cabeça e esperar a morte?” Ela colocara o disco na vitrola. “Tomás, você já viu como a noite está bonita? Por que não vai dar uma volta?” Ele foi. Na volta, encontrara Magô. Teve a sensação de nascer de novo quando ela o chamou de Tom. Sentira-se um outro homem. Outro homem. Que anúncio usava essa frase? “Fiquei um outro homem”. O anuncio estava num bonde, devia ser de um xarope. Fazia tanto tempo. Saudade de andar de bonde, ir lendo os anúncios, os avisos tão cordiais, tão prudentes: “Espere até o bonde parar!”. Tempo da prudência, tempo da consideração. Era bom deslizar pelas ruas desertas, conchilar naquele balanço para a direita, para a esquerda, como num berço...
— Então, Tom, resolva logo, a Renata fica uma fúria quando a gente se atrasa.
— Eu quero que essa Renata vá pro fundo do inferno.
— Tom!
— Ela com toda sua corja de convidados.
— Ih, como você anda desagradável — exclamou a jovem fechando o zíper do vestido. — Você não faz idéia como anda desagradável ultimamente.
“Ando com sono”, ele quis dizer. Levantou friorento a gola do pijama até as orelhas. Abriu a boca para bocejar, as mãos em concha diante da boca, aquecendo-as com o bafo. Dormiria uma noite inteira e a outra noite inteira e a outra ainda... Noites e noites dormindo até morrer de dormir. Na vitrola, a musiquinha sem neurose. E Francisca ao lado, entretida na sua paciência, ah, como amava aquele doce som das cartas que murmurejavam sobre a mesa enquanto também ela murmurava coisas que não exigiam resposta. Queria um valete, vinha uma dama: “Não era de você que eu estava precisando”, ralhava. Os móveis antiquados. Os vestidos antiquados. A beleza antiquada. “Mas Francisquinha, você precisa usar uns vestidos mais atuais, precisa se pintar!” Deu-lhe um vidro de perfume. Deu-lhe um batom que viu anunciado numa revista, uma nova tonalidade que fazia até as estátuas despertarem, estava escrito, com essa cor até as estátuas acordam! Deu-lhe um colar de contas vermelhas, dezenas de voltas vermelhas, “Somos jovens ainda, minha querida! Vamos reagir?” Olhara-o com uma expressão reticente. Seria ironia? Não, talvez nem isso, era generosa demais para ser irônica. Olhara-o quase como uma mãe olha para o filho antes de entregar a chave da porta.
— Tom, você acha que essa luva combina? Tom, estou falando, responda!
— Combina, meu bem, combina.
— Que sabe a verde?
— Essa está ótima.
Quase como uma mãe olhando para o filho. Então ele baixou a cabeça e saiu. Na rua sentira-se um adolescente apertando a chave no bolso. “Sou livre!”, quisera gritar às pessoas que passavam, aos carros que passavam, ao vento que passava. “Livre, livre!”
Ah, se pudesse voltar sem nenhuma palavra, sem nenhuma explicação. Ela também não diria nada: era como se ele tivesse ido comprar cigarros. “Tudo bem, Francisquinha?”, perguntaria ao vê-la franzir de leve as sombracelhas. Ela se inclinaria para o baralho: “ Está me faltando uma carta...”.
A voz de Magô pareceu-lhe anônima. Irreal. Ouviu a própria voz pastosa mas tranqüila.
— Vá você, querida. Divirta-se.
Ela ainda insistiu. Teria mesmo insistido? Os saltos do sapato ecoaram no silêncio como pancadas algodoadas, fugindo rápidas. Estendeu a mão até a cama e puxou a coberta. Cobriu-se. Tudo escuro, tudo quieto. O perfume foi-se  suavizando e ficou o perfume  de um jardim de estátuas, estátuas alvíssimas que dormiam sem pupilas, nenhuma cor conseguiria fazer com que abrissem as pálpebras. Estendeu molemente as pernas. As pernas de Magô ressurgiram na escuridão: dançava nua, esfregando os pés no tapete enquanto a música do violão foi subindo pelas suas pernas, como meias. Agitou-se e quis fechar a porta na cara do homem de unhas pretas, “O problema é meu!” A música decomposta já chegava até as coxas das pernas de colunas, “Cuidado, Magô! O Fernando não!...”.
Dançarina e músico pousaram como poeira na antiga mesa. Abriu-se num leque o baralho murmurejante. E reis com pé de lã foram saindo, arrastando seus mantos de arminho. Enrolou-se num dos mantos e ficou sorrindo para Francisca. Ela parecia luminosa no seu vestido de opalina rosada, mordicando de leve a ponta de uma carta. “Posso?”, perguntou-lhe, deitando a cabeça no seu colo.
Devolveu-lhe a chave.


Lygia Fagundes Telles (Antes do Baile Verde)