terça-feira, 26 de novembro de 2024

Sobre o romance "Perto do coração selvagem"

 Perto do coração selvagem [1944] é “o romance de estreia”, da escritora Clarice Lispector que em torno de seus quase vinte anos é em vida e mais tarde considerada uma das escritoras mais importantes da literatura. Lispector chegou ao Brasil muito cedo, morou em Recife, depois no Rio de Janeiro, estudou e foi casada com um diplomata brasileiro, ao que a possibilitou muitas idas ao exterior Suíça, Itália entre outros lugares, teve dois filhos, escreveu vários romances e contos – escrevera a convite de jornais, era de personalidade introspectiva, à frente de sua época, ao mesmo modo que muitas escritoras brasileiras tais como Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, entre outras muito importantes.

 

Em seus contos, novelas e romances é notável uma linguagem irreverente ao modo de James Joyce, Virgínia Woolf, o fluxo de consciência [the stream of consciousness] de seus personagens. O texto de Clarice Lispector não se prende a gêneros bem definidos, escritora de contos, novelas que estão entre o romance e o conto: apresenta uma prosa poética.

A escritora consegue exatamente mostrar o que as personagens pensam, sendo mulheres ou homens. O leitor se pergunta quais as referências de leitura da autora. Em Perto do coração selvagem, a epígrafe inicial mostra sua linguagem hermética, cita o escritor muito conhecido Irlandês James Joyce que diz “Ele estava só. Estava abandonado, feliz perto do selvagem coraçãoda vida”, epígrafe que remete ao título de seu livro e ao fluxo de pensamento das personagens, com isso, durante a leitura os leitores se deparam com a corporeidade dos mesmos e com leituras e percepções diluídas de Spinoza e da música “estudo cromático de Bach”. Apesar de introspectiva, seu estilo de linguagem é muitas vezes irreverente, desconcertante suas narrativas se confundem com as experiências da autora, por isso, muitos notam, como “autobiografias não planejadas”, a estranheza. Falava de si ou não? Havia o que ela mesma nota, “transfiguração”. Seria o texto de Clarice a transfiguração da matéria bruta? “[…] nada existe que escape à transfiguração” (p. 180). Seria a autora Lídia, Joana ou Otávio? O leitor não consegue e não tem como saber.


A autora depura os acontecimentos de sua vida, diluída em símbolos. Sua narrativa se constrói tal como a engenhosidade da poesia. “Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio’” (Água viva, 1973, p.40). E bio é vida.


Se em Perto do coração Selvagem a “eternidade” para sua personagem não é mensurável, sequer divisível, assim não por quantidade, e sim por qualidade, sendo sucessão, talvez duração, ao que parece mostrar certa finitude do corpo e as relações do passado e do presente e futuro dos personagens. Onde estaria a eternidade? Descreve uma de suas personagens“[…] talvez num fim de uma tarde, num instante de amor […] (p. 193). Já no romance Água viva, por exemplo, uma prosa poética, “o instante é somente vida”. “E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.” (p. 8). A imagem do professor, a esposa algo que desconcerta, certo desarranjo tão diferente da imagem poética no romance posterior de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.


Os pensamentos, os fluxos de pensamento de “Otávio” entre Lídia e Joana fica entre seu sentimento de amor e desprezo, responsabilidade com a vinda de um filho, dúvidas e reflexões ao mesmo tempo agudeza do olhar masculino. A incompreensão do feminino e a corporeidade de ambas, sentimentos que voltam em tempo de criança, do passado para presente. “De profundis”. A mulher enquanto mistério. “Nunca penetrei no meu coração” (p. 151). A narrativa que volta da infância para a juventude e retorna, como algo cíclico. A descrição da vinda do filho “Falava das próprias dores e ela embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom – brilhante e misterioso como de uma mulher grávida.” (p. 99) Assim a feminilidade de Lídia e Joana eram descritas.


A sublimidade do mar, mar que parece personificado “o mar era muito”. E a incompreensão da palavra “nunca”, sequer masculino ou feminino. A epifania de suas personagens. O mistério do dicionário como achar o “i” depois do “l”, assim como retornar? A palavra Lalande que ao estranho explica: “Lalande é também mar de madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia […]”. São símbolos diversos que se apresentam em seu livro de estreia que figuram em seus livros posteriores: o relógio: “tac-tac-tac… O relógio acordou em tin-dlen sem poeira”/ “Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio”/ “sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite”.


Sobre o tempo da narração de Lispector não se dá numa sucessão de acontecimentos lineares, sua narrativa parece cíclica, vem da percepção de suas personagens e da linguagem. Em Perto do coração selvagem não se tem uma narrativa de acontecimentos lineares, às vezes nota-se lacunas em que o leitor retoma em momentos seguintes alguns dos acontecimentos, são analepses e prolepses, uma vez que se tem na narrativa que se inicia por descrições da infância questões do cotidiano depois retorna à juventude, a idade adulta dos mesmos e às vezes retoma acontecimentos do passado. Se mistura o “tempo do narrar” [Erzählzeit] com o “tempo narrado” [erzählte Zeit]. Benedito Nunes nota sobre o eterno na narrativa, na linguagem literária ao que às vezes se assemelha a narrativa de Lispector:


"É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro “De uma ‘infinita docilidade’, o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinitivamente ou de contraí-los num momento único, caso que se transforma no oposto do tempo,
figurando o intemporal e o eterno." (1988, p. 25)


Na narrativa de Clarice Lispector, nota-se o discurso indireto livre, próprio às narrativas modernas, a discursividade de sua narrativa coaduna o que se teria em separado o discurso direto da narrativa: quando se tem a fala direta das personagens, do discurso indireto quando o narrador por elas falam. Lispector mistura as falas das personagens (discurso direto) com seus pensamentos, fluxo de consciência em primeira pessoa e às vezes em terceira pessoa. É como se a autora abrisse o pensamento das personagens ao leitor. Cada um descrevendo as impressões da vida em primeira pessoa. O que a autora faz conforme comenta Benedito Nunes fundi o tempo da história ao da ficção com a da escrita.


REFERÊNCIAS


GOTLIB, Nádia Batela. Teoria do conto, São Paulo, ática, 1997.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, [1944] 1998.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. editora ática, 1988.


quinta-feira, 14 de março de 2024

o lero lero que ouvi

Estava pensando como escrever um conto. Só que há um problema, não gosto de falar de mim, o que parece inevitável muitas vezes. Então teria que inventar uma estória. Ouvi dizer que quem conta um conto aumenta um ponto. Difícil criar uma estória. Não queria falar sobre mim, está que narra. A narrativa é um (entre)mesclar de palavras, frases e como dizer tudo com palavras doces, se a maior parte dos que convive entre nós: aqueles, que você o leitor bem conhece, não têm uma língua tão amistosa. O escritor não parece escrever para agradar, ao que parece escreve por escrever. Na verdade, não sei, vai de sua língua, de seu pesar. O agradável está nos sentidos de quem lê e não nas  mãos de quem escreve. Vou dizer por mim, quando leio uma estória, às vezes fecho os olhos e abro de novo e penso na grandiosidade da simplicidade de palavras de alguns escritores. Já ouvi muito lero lero. E reparo muito, não sei o motivo, mas reparo nas palavras. Será que estou em boas mãos, às vezes me pergunto? Há aquelas pessoas que conseguem ver um todo, no sentido da frase e de uma amplitude no conjunto de palavras e frases - só que eu não consigo, sempre olho as palavras. Quando, não sei uma palavra, então aquilo me deixa reflexionante. Fiquei pensando neste lero lero... que ouvi. E gostei de ouvir ... dizer lero lero, porque ele disse na sua simplicidade. Um conto, uma estória é quase um lero lero, no sentido da letra. Todo mundo sempre quer escrever e ser como muitos dos grandes autores. Algo difícil porque são imbatíveis e com toda certeza sobre o que estou falando tem algo de lero lero… O lero lero é para distrair é para esquecer um pouco o que não se quer lembrar. É para dizer de modo sútil, não gosto disso. Só que, queria mesmo era que o tempo voltasse, a sucessão de acontecimentos. Parece estranho dizer isso: porque o tempo não volta. Sempre achei que não, eu acho que não. Queria que voltasse apenas há cinco anos ou sete anos. Só que o tempo não volta... E não sei falar sobre o tempo. O tempo é algo difícil e quando a chuva cai nunca sei se é bom, também nuca sei se a lua grande e brilhante na janela é bom. Hoje, é dia de sol ao menos aqui onde estou. O sol é tudo. Só que o sol é muito sublime. A chuva também é sublime, o rio e o mar, o vento – só que o sol é imbatível. O sol aquece e queima. O sol ilumina e ofusca. Do sol é preciso se proteger. Ele nos dá vida, mas há certa distância necessária. Tudo o que sei é que o sol é importante. O lero lero é um modo de proteger àqueles que amamos. Vou encher este texto de lero lero, de palavras soltas para não deixar e não colocar nada do que é importante para mim visível. É um modo de figuração, o que na poesia acho mais próximo. A figuração, a transfiguração é o caminho – de dizer – sem dizer, o que você sabe. Por isso, estou aqui me esforçando para dizer isso a você que sabe ou que deveria saber que as palavras que mais me envolvem são as simbólicas. E que está difícil explicar a apenas quem precisa saber. Li um poema e minha dúvida permanece: O poema chama “Reencontro com a amada” é de um escritor a outro alguém. E o verso fica em meu pensamento “Mas não o já velado, revelado demais que desencantou”. E a minha dúvida de leitora assídua, há anos, permanece. E outro verso “Mas a nudez nem existe.”. "O pio do quero-quero" e amizade, será que existe? "saya’su, acauã". E o que fica. E o que é importante. São muitas dúvidas.

De Pollyanna Nunes Ramalho

Tipografia do coração

Não sei quais palavras escolher quando penso em você, ou no que fomos. E toda palavra
aleatória de pessoas: amigos e amigas me faz lembrar daqueles momentos que olhava seu
rosto contra o sol e era como se fosse tudo. À vezes não sei bem de quem estou falando acho que este você não existi . Existe e talvez seja a mim uma mescla de um ideal de alguém que goste ou gostei muito. Está na minha vida como um momento de paz tão difícil – ainda mais agora. É dissonante feito o ar, uma respiração. Sinto sua falta ou de mim. Eu não sei, estou mesmo cansada. Explicar as minhas dores é difícil. Não era pessoas novas que queria na minha vida, era você ou que tudo estivesse bem. E não pode imaginar o que tem sido a mim. E quer saber, você era feito flores caídas que forravam o meu chão ou um ar, ou um fôlego quando tudo estava ruim ou talvez você era aquele olhar que eu carregava ou você era o nó na minha garganta. Ajudava pensar em você quando tudo estava completamente impossível e mesmo nas minhas palavras mais vulgares por engano foi porque
no fundo imaginei você no amago da minha existência. E me cansa mais ainda me sentir uma sonambula pelas tardes do meu dia e mais ainda me enfastia certas coisas que não pode entender. As palavras rudes dos seus, você não sabe. Doem. Doem mais ainda os meus e ver tudo igual todos os dias. E escondo a sua existência nas minhas palavras. E não se pode saber porque não tenho imagem alguma sua, lembrança. Aquelas cartas talvez tenha guardadas alguma ou talvez jogou todas fora. Já não sei mais o que sou e se é você quem é importante ou quem me ensinou tantas coisas. Tudo se mistura. O que adianta ver alguém parecido com você se não é você. É um reflexo, uma fisionomia, um contorno mal feito do que é você. As minhas dúvidas são tantas. Quem é você? (Ce) não posso mais dizer  – acordo e não quero mais falar de seu nome –


Os olhos,
Os olhos são de cores variadas e modos diversos, são olhos,
a pupila dilata quando algo surpreende,
o que se vê fora é de dentro,
o externo não funciona sem o interno,
os olhos olham, a visão de ver é uma verdade
que vem de dentro ao ver o externo, o mundo existe a partir de um olhar
o mundo sem o olhar humano, é ininteligível
– inscreve-se aqui com aponta do lápis ou caneta –
e quando se acorda de manhã o mundo é visível.
Olhos são o espelho da alma, mas ao contrário do que se pensa,
os olhos não estão fora, mas dentro.

Por Pollyanna Nunes Ramalho