domingo, 24 de janeiro de 2016

Que este amor não me cegue nem me siga

Que este amor não me cegue nem me siga
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fatigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só sóem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

                                                      Hilda Hilst
 Ver:

Azougue 10 anos org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial 2004

De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão












De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão.
A mesma ilusão

Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
A fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada.
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor de teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho prata e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n'água.

                                  Hilda Hilst

Ver:

Azougue 10 anos org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial 2004.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

 
Gregor Samsa e a sua metamorfose

 

Em “A metamorfose”, livro narrado em terceira pessoa, Franz Kafka nos conta a história de um homem, Gregor Samsa, que se torna um inseto. A estranheza do enredo vem à tona logo na primeira frase da novela: “Quando Gregor Samsa, numa certa manhã despertou de seus sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama transformado em um inseto monstruoso”. (p. 1, 2007, tradução nossa). A partir de sua metamorfose, Samsa, enquanto inseto estranho, não consegue mais realizar suas atividades diárias, como por exemplo, o trabalho de caixeiro-viajante.  Assim, o narrador descreve minunciosamente as dificuldades do protagonista ao se levantar da cama, ao perceber-se atrasado para o trabalho. Além disso, a obra cria certa expectativa na aparição do inseto à família e ao procurador da empresa, que vai até a casa de Samsa para saber a respeito de seu atraso na estação ferroviária. 

O pai (figura importante em toda obra de Kafka), a mãe e a irmã Grete, além do procurador, ficam todos assustados com a aparição de tal inseto. E talvez, a maior estranheza da cena está no fato de Samsa, mesmo com a aparência repugnante de um bicho, possuir ainda as características psicológicas humanas. Partindo desse ponto, todas as relações afetivas e profissionais construídas pelo protagonista se desfazem. O trabalho que sustenta a família, bem como a convivência torna-se algo improvável.

Grete é, ao longo da narrativa, a única que leva comida para o irmão, tentando assim, estabelecer a velha relação, pois era ele quem a incentivara a fazer o curso de violino. Não obstante, dia após dia, a repugnância ao inseto se demonstra através dos sustos e da rejeição. Além disso, a família se vê sem a força de trabalho deste provedor, que antes pagaria o curso de violino e as principais contas da casa, e que após a metamorfose torna-se um estranho a ocupar um quarto e a causar constrangimento à família.

 Durante toda narrativa instala-se o impedimento afetivo na convivência familiar até a morte de Gregor. Portanto, é interessante observar como em “A metamorfose” o desemprego e a crise econômica se colocam como pano de fundo necessário na compreensão da obra. No fim da história, o estranho se apercebe de sua condição inútil e subterrânea dentro do âmbito familiar e morre em seu quarto sozinho. 

 Após a morte de Gregor, a empregada empurra seu corpo com a vassoura e, como descreve o narrador, era o fim do mês de março, ou seja, o início do verão, desse modo, a morte sublinha o fim da angustia vivida pela família. A metamorfose representa não só a mudança no ambiente familiar, mas, sobretudo, a transformação do sujeito a partir da exploração, que dentro da organização social da época não serve, senão para o trabalho.

 Pollyanna Nunes Ramalho
 
Texto em: