O livro O
Visionário, de Murilo Mendes nos traz evidencias do olhar profético de sua
poesia acerca dos tempos da vida e do fim dos tempos. A obra foi escrita entre
1930 e 1933, período de grandes conflitos no Brasil e no mundo.
Para a poesia de Murilo Mendes o homem é a
vida, o espírito, e também está entre Deus e o diabo. Sua poética laça mão da
figura feminina para tematizar as transformações humanas impostas pelo tempo. O
nascimento e a jovialidade estão em concomitância com a velhice e a experiência
humana.
No poema abaixo Formas Alternadas é possível observar o jogo que se dá através da
alternância das imagens, ora da menina, ora da mãe que se transformam com o
desenrolar do tempo.
FORMAS
ALTERNADAS
Vi
a menina crescendo
Na
sombra de sua mãe.
Vi
a mãe dela sumindo,
O
corpo da outra aumentando,
Vi
a posição dos corpos
Mudando
sempre no espaço,
O
tempo desenrolando
Olhares
e movimentos,
Vontades,
curvas e cheiros,
Ora
da filha bonita,
Ora
da mãe consumida,
Com
tantas afinidades
Vindas,
sem se perceber,
De
formas bem semelhantes:
Não
sei onde a mãe acaba
Nem
onde a filha começa.
É possível observar, que algumas rimas
presentes no poema com os verbos no gerúndio nos dão a idéia de estados
inacabados, o que também, é um tema proposto por essa poesia que é voltada para
a metamorfose humana. E apesar da sensação de distinção causada pela
alternância entre a mãe e a filha, o desenlace do poema nos mostra a não
distinção das formas entre os dois corpos.
Murilo Marcondes de Moura em “A poesia como
totalidade” cita algo sobre a metáfora
dissolvente em que Kayser diz:
Todo o existente está
ligado misteriosamente, de forma a não existirem fronteiras firmes entre as
coisas, e tudo segue um curso permanente, em transformação constante.
É possível perceber, que Moura enfatiza a
intenção da poética muriliana em utilizar, como o próprio Murilo Mendes afirma,
a metáfora com toda sua carga de força, deixando
de lado as passagens intermediárias. Assim,
a metáfora presente no fim de Formas
Alternadas tematiza as inquietudes e as transformações da vida.
Outro poema que predica aspectos
importantes da poesia de O Visionário
é Tédio na Varanda. Em que o sujeito
do poema hesita entre as ancas da morena e
entre uma reflexão sobre a extinção do homem. O que nos leva a perceber o jogo
de sentimentos opostos que se realizam ao mesmo tempo.
TÉDIO
NA VARANDA
Hesito
entre as ancas da morena
Deslocando
a rua,
E
o mistério do fim do homem, por exemplo.
Dormir!
As
camélias lambem
O
sexo de teus lábios.
Os
pássaros da vertigem
Bicam
estátuas de pano.
O
mar fala a língua de p
Enquanto
eu não tenho
Pés
de vento,
Mãos
de metal.
As
botas de sete pedras
Comem
léguas de aborrecimento.
O sujeito que se sente entediando diante
dessas duas configurações tem o desejo de dormir. E esse dormir, com efeito,
está associado no desempenho desinteressado do pensamento, e também se associa
com o desejo de se colocar no mundo onipotente do sonho.
Na Revista O Eixo e a Roda, Murilo Mancondes de Moura associa de maneira
coerente, o conflito do sujeito de Tédio
na Varanda com a formulação baudelairiana de que:
Há
em todo homem, a todo instante, duas postulações simultâneas: uma para Deus,
outra para o diabo. A invocação a Deus, ou espiritualidade, é um desejo de
ascender; aquela de Satã, ou animalidade, é uma alegria de descer. É a esta
última que devem ser relacionados os amores pelas mulheres
As duas situações díspares da primeira
estrofe, que é a tensão do poema geram o tédio e o desejo de dormir, afinal, é
o mundo do sonho que é capaz de oferecer um apaziguamento desse espírito.
O encadeamento das figuras camélias, pássaros e a ação de bicar,
nos trazem uma imagem de um jardim e também a figura mítica de Prometeu. O jardim é como um cenário, ou
melhor, um quadro que emoldura essas tensões. E a figura mitológica de Prometeu, a meu ver, se relaciona com a
inatividade do homem. Prometeu que ao receber o castigo de Zeuz, em que seu
fígado se regenera para ser bicado todos os dias, se encontra como um
espantalho sem possibilidades de ação, do mesmo modo que o homem de Tédio na Varanda, que está como uma máquina desligada.
O livro os Quatro Elementos, escrito em 1935, porém publicado em 1945,
enfatiza o tom de elevação do poeta Murilo Mendes. O título da obra é uma boa
partida para a percepção da articulação dos elementos água, fogo, terra e ar.
Mas, é necessário observar que olhar do poeta, não só converge para todos esses
elementos, como também, para aqueles temas tratados em o Visionário.
Em Os
Quatro Elementos permanece as configurações surrealistas típicas de Murilo
Mendes. O autor articula em um mesmo plano, elementos e imagens aparentemente
arbitrárias, mas que criam sentidos coerentes. Como por exemplo, no poema
abaixo:
A NOITE DE SETEMBRO
O
céu revestiu uma couraça branca
Estrelas
dançarinas de quinze anos
A
lua orienta o navio
A
pena do poeta
O
coração e a cor das amadas
A
lua é virgem
Lua
abstrata
Ela
participa do grande segredo
Aparece
no céu inesperada mulher
Talvez
a musa
Em
outra idade em outra posição em outra dimensão.
Amemos.
Carlos Eduardo Ortolan Miranda, em sua
Dissertação faz o seguinte comentário:
Se
o substantivo “couraça” poderia induzir, num primeiro momento, a um ligeiro (ou
grave) desagrado, ainda mais quando aliado à inesperada “brancura” (lembre-se
aqui as infindáveis discussões da crítica acerca do branco como imagem do Mal
Absoluto em Moby Dick, clássico romance de Melville), o poeta trata de, em nova
guinada vertiginosa, introduzir uma imagem de alegria absoluta, na forma de
“estrelas dançarinas de quinze anos”
O
que Miranda percebe aqui é o que Murilo Mendes faz em sua poesia, um jogo de
imagens díspares que criam um único sentido. As figuras desse poema como, as estrelas, o céu, a pena do poeta e a lua se encadeiam de maneira que
caracterizam os sentimentos de alegria, inspiração, elevação e até mesmo a
inacessibilidade da mulher.
Outro aspecto interessante a ser observado
nesse poema são as construções sintáticas soltas, que eliminam as passagens
descritivas, característica também louvada pelo movimento Surrealista.
Portanto, espero que algumas
considerações aqui realizadas tenham esboçado, de alguma maneira,
características presentes em O Visionário
e em Os quatro Elementos, já que, o
poeta aqui tratado possui uma obra grande e de uma complexidade atrativa, que não
só envolve sua poesia, mas também sua vida.
Pollyanna Nunes Ramalho
MURILO, Mendes. Poesia
Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: A Poesia como Totalidade. São Paulo: Edusp, 1995.
MIRANDA, Carlos Eduardo Ortalan. Os Quatro Elementos: O
Lirismo Dialético de Murilo Mendes. Dissertação de Mestrado, Universidade de
São Paulo: São Paulo, 2009.
BRETON, André. Manifesto
Surrealista: 1924. Transcrito por Alexandre Linares. Arquivo digital: The
Marxists Internet Archive.
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