No delírio da tarde
Eu vi meu rosto.
Na taça emborcada do dia sorvido
Eu vi meu rosto.
O cristal se partiu,
Esgotei meus olhos na noite.
Maria Angela Alvim
Livro "Superfície" 1950, em Poemas
Neste blog, há textos de aulas que assisti durante graduação em Letras, são contos, poemas, entre outros. "Leituras descontínuas" tem relação com as leituras que faço no dia-a-dia. São leituras de poemas, trechos de livros, pois que não existe continuidade nas leituras: lê-se um livro, uma imagem, um outdoor, um poema, um conto, uma crônica, por isso a descontinuidade. A maior parte dos textos - quando meus, são apenas ficções, sem correspondência exata com a realidade.
Maria Angela Alvim
V
Moro em mim? No meu destino largado -
partido em mil?
Moro aqui? Demoraria
Sempre aqui, sem me saber - fugindo sempre
estaria?
Eis um lugar. Degredo
( de quê?). Dimensão se perseguindo
num sonho? - Sim, que me acordo.
Tudo existe circunstante
e ninguém para me crer.
Sou eu o sonho, momento da ausência alheia ( que devasso quase fria)]
Morte, vida recente,
Subindo em mim a resina,
ungüento de noite, amor.
As sombras e seus véus,
Tantos véus - o mais sucinto
Preso a meu corpo ( aparente?)
Me divide em dois recintos.
Um deles sendo equilíbrio
Noutro posso me conter.
Avanço no sono aberto
Até a altura do dia,
Fria, fria,
Mais fria minha pele
Filtra a aurora - neste tempo
Aquela hora, seu pulso de instante e ocaso.
Eis que me encontro. Limite
de transparência e contato
Entre a luz e meu retrato, casta
Parede a louca?
Marulho d'água, caindo
dentro de mim, claridade.
Graças de mãos mais presentes
Que minhas mãos, já vazias
De sua forma, na palma.
Que gesto extenso as reteve
Sempre além, configuradas
E este azul, quase em branco
se desfazendo ( na carne?).
Ah! Três retinas cortadas
De um prisma, se amanhecidas
Nestes vidros, na vigília.
Ah! Três retinas pousadas
Em ver, em ver contemplando
(Ser, será o esquecimento
De quanto somos - pensando?).
VI
Quero crer-me esse sentido
De longa memória branca.
Sobre ele não lembrar,
- ficar, ficar,
No encontro de tudo em pouco:
O tempo se refez num instante
Deste espaço superfície,
Chão que nem me sustenta
(Dura sou, eu, e dura amargura é a minha).
Não, não me lembrarei,
Seria pensar começos
E outros fins - ó lunares
Lembranças, doridos passos
( Muitos fui acompanhando
De longe e mais me pisaram
Aqui, ali, onde sei).
Estou? Se estou me consentem
Os gestos e os movimentos?
Nenhum ruído se atenta
Que dentro não fosse ouvido.
E tudo em mim se repete
Enquanto durante e sempre
A lembrança vai baixando
A seu leito mais dormente.
Os pensamentos seriam
Roteiros menos sofridos?
Deixá-los que se solveram
Nestes noturnos se procurando,
Da idéia, refluindo
Sobre dúvida, distância
E certeza, aéreo marco
De um repouso em si medido.
Deixá-los. Deixar-me enquanto
Existe um consenso oculto.
Pensarei que desvivi
Num limite-lucidez
Lá e, no entanto, aqui.
Maria Angela Alvim, livro "Poemas"