sábado, 24 de julho de 2021

 No delírio da tarde 


Eu vi meu rosto. 


Na taça emborcada do dia sorvido 


Eu vi meu rosto.


O cristal se partiu, 


Esgotei meus olhos na noite. 


Maria Angela Alvim


Livro "Superfície" 1950, em Poemas 



 Maria Angela Alvim 

V


Moro em mim? No meu destino largado - 

partido em mil?

Moro aqui? Demoraria 

Sempre aqui, sem me saber - fugindo sempre

estaria?

Eis um lugar. Degredo 

( de quê?). Dimensão se perseguindo 

num sonho? - Sim, que me acordo.

Tudo existe circunstante 

e ninguém para me crer. 

Sou eu o sonho, momento da ausência alheia ( que devasso quase fria)]

Morte, vida recente, 

Subindo em mim a resina,

ungüento de noite, amor.


As sombras e seus véus,

Tantos véus - o mais sucinto 

Preso a meu corpo ( aparente?)

Me divide em dois recintos. 

Um deles sendo equilíbrio

Noutro posso me conter.

Avanço no sono aberto 

Até a altura do dia,

Fria, fria, 

Mais fria minha pele 

Filtra a aurora - neste tempo 

Aquela hora, seu pulso de instante e ocaso. 


Eis que me encontro. Limite 

de transparência e contato 

Entre a luz e meu retrato, casta 

Parede a louca? 

Marulho d'água, caindo

 dentro de mim, claridade. 

Graças de mãos mais presentes 

Que minhas mãos, já vazias 

De sua forma, na palma. 


Que gesto extenso as reteve 

Sempre além, configuradas 

E este azul, quase em branco

 se desfazendo ( na carne?). 

Ah! Três retinas cortadas 

De um prisma, se amanhecidas 

Nestes vidros, na vigília. 

Ah! Três retinas pousadas 

Em ver, em ver contemplando 

(Ser, será o esquecimento 

De quanto somos - pensando?). 


VI 

Quero crer-me esse sentido 

De longa memória branca. 

Sobre ele não lembrar, 

- ficar, ficar, 

No encontro de tudo em pouco: 

O tempo se refez num instante 

Deste espaço superfície, 

Chão que nem me sustenta 

(Dura sou, eu, e dura amargura é a minha). 

Não, não me lembrarei, 

Seria pensar começos 

E outros fins - ó lunares 

Lembranças, doridos passos 

( Muitos fui acompanhando 

De longe e mais me pisaram 

Aqui, ali, onde sei). 


Estou? Se estou me consentem 

Os gestos e os movimentos? 

Nenhum ruído se atenta 

Que dentro não fosse ouvido. 

E tudo em mim se repete 

Enquanto durante e sempre 

A lembrança vai baixando 

A seu leito mais dormente. 

Os pensamentos seriam 

Roteiros menos sofridos? 

Deixá-los que se solveram 

Nestes noturnos se procurando, 

Da idéia, refluindo 

Sobre dúvida, distância 

E certeza, aéreo marco 

De um repouso em si medido. 


Deixá-los. Deixar-me enquanto 

Existe um consenso oculto. 

Pensarei que desvivi 

Num limite-lucidez 

Lá e, no entanto, aqui. 


Maria Angela Alvim, livro "Poemas"