segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Nova cara do mundo



O cometa de Halley vai passar
Toda a cidade acorda pra ver o cometa
Ele é enorme e fabuloso
destrói idades pensamentos de homem.
O mundo muda a cara quando ele passa
e meninas desmaiam no fundo do sertão.
O cometa passa e arrasta um pouco da minha alma.
Fiquei triste, triste, jururu!
Em vão minha tia
Virgínia Amália Monteiro de Barros
repete no piano com tanto sentimento
a valsa Transiberiana, meu xodó naquele tempo.
Qual valsa, qual nada!
O cometa me traz o anúncio de outros mundos
e de noite eu não durmo
atrapalhado com o mistério das coisas visíveis.
No rabo imenso do cometa
passa a luz, passa a poesia, todo o mundo passa!


Murilo Mendes
Aforismos

Murilo Mendes

O difícil não é encontrar a verdade: é organizá-la.

Como é simples o mistério da Santíssima Trindade: um só Deus em três pessoas. Que complicação seria se houvesse três deuses!

Jesus Cristo não esperou a maturidade para liquidar os sábios e doutores: fê-lo aos 12 anos.

O anjo da guarda é proporcional.

Jesus Cristo é tão utopista, que coloca o Paraíso no outro mundo; Karl Marx era tão realista, que colocou neste.

É difícil ser cristão sem ser antes pagão, e israelita.

O sonho é o pensamento em férias.

Jardim Secreto



Olhei através da janela é vi um jardim.
Percebi que ele fora feito só para mim.
Todos os dias, desde então, após meu café caminhava até lá.
Mas, era tão pouco me esconder por apenas algumas horas,
que às vezes eu até me perdia nele.

Tantas vezes desperta no alvorecer, eu me esquecia de ser.
Pode ser que eu apenas me tornava um outro ser integrado, natural.

Minhas mãos criavam flores azuis, meus pés uma expansiva relva,
todo meu corpo transportado de tempos em tempos.

Percebo a existência de muitos jardins como esse e
meu único medo é não saber mais viver além dali.



domingo, 21 de dezembro de 2014

O lobo




Diante de mim, olho e não vejo nada.
Tacitamente atravesso o chão forrado de pedregulhos
e sinto o aroma gélido da terra.

Em noites, canto músicas contínuas...
e as luzes me alucinam.
Uma pequena presença e meus olhos tornam-se rubros e
oblíquos, meus lábios obtusos,
minha felpa crispada e meu corpo esquivo e ofensivo.
Quando um corpo se coloca diante de mim e me encara, eu o devoro.

Mas, diante de uma distração, emudeço.

                                                  *Pollyanna Nunes Ramalho 22/12/2014

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre os pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste  em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a todo pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste...vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distancia superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e a paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que defini o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos mistérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pusora
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Tempo e Mundo em Confissões de Minas e a Rosa do Povo


Em 1943, nas palavras de Drummond “o mundo estava submetido a um processo de transformação pelo fogo” (2011: 13) e, nesse processo, como o autor poderia deixar de tratar dos acontecimentos de sua época? Acontecimentos que até hoje deixam cicatrizes – ao que parece – insuperáveis.  Sua consciência, seu modo de enxergar a literatura, certamente, o impediria de fazer o caminho inverso, de se colocar simplesmente, em uma torre de marfim.
Em muitos poemas de “A Rosa do Povo”, publicado em 1945, e em alguns ensaios/crônicas de “Confissões de Minas” é possível perceber diversas relações históricas como, por exemplo, as dos acontecimentos no âmbito global e particular, que afetam as duas formas literárias – prosa e poesia, bem como as das utopias comunistas, nos quais se acercavam muitos intelectuais engajados politicamente no período do estado novo. Assim, principalmente em “A rosa do Povo” há uma preocupação coletiva, como se destaca na seguinte inversão sintática: “Tal uma lâmina,/o povo, meu poema, te atravessa” (1995: 11), mas também nos dois livros articulam-se tempo, mundo e homens. São confissões que partem do “eu” de Minas para o mundo.
No poema “Carta a Stalingrado”, Drummond realiza um tipo de Ode à cidade, uma homenagem à sua resistência e acrescenta: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, desse modo, o verso se abre para a leitura do escritor/jornalista e da poesia que, neste contexto, é atravessada pelos fatos. O poema, também, refere-se às outras cidades, que foram assoladas pela destruição. A ruína e a morte também são tematizadas do mesmo modo como no poema “Visão 1944”, em que olhos não conseguem abarcar tanta destruição. A morte está num porto da Itália, nos homens que parte do Pará e do Quebec e aparece, também, na figura do muro branco à espera de judeus de barbas e roupas negras.
Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro – e o muro é branco.
                                                 (Andrade, 1995:173)

Já no poema “Versos à boca da noite” o tempo aparece logo na primeira estrofe de modo personificado e materializado corporalmente neste sujeito: “rugas, dentes, calva...” (1995:148). A presença do verbo “abater” acrescido da ruptura criada pelo enjambement demostra a violência aniquiladora deste tempo sobre este “eu”. O tempo a partir daí constrói as relações do passado e do presente ligados à juventude e à idade madura.
Alguns elementos também reaparecem em diversos momentos como a mão, os olhos, o relógio e as mudanças atmosféricas, o primeiro muitas vezes simbolizando o impedimento ou a ausência de ação, o segundo inserido no tópico da visão precária, o terceiro ligado à aniquilação do tempo e o quarto ligado às mudanças atmosféricas que virtualmente metaforizam as indecisões do sujeito poético.
  O sujeito do presente que está, digamos, na metade da vida, enxerga a impossibilidade de se recomeçar o dia. Após os aborrecimentos gerados através das experiências da solidão, da melancolia – amada e repelida –, das incertezas criadas a partir das divisões entre dois mares, duas mulheres e duas roupas, a figura da mão reaparece na oitava estrofe, mas não como a mão do tempo, e sim como a mão do sujeito despido de curiosidade de amor. Além disso, embora haja a recusa desse “eu” à plenitude, há também, simultaneamente, a rememoração – não nostálgica – e a aceitação – não resignada – dessa noite, dessa idade que não contém mais o furor dos vinte anos, mas que contém “um mergulho em piscina, sem esforço”, uma inteligência adquirida no universo.
Diversas relações podem ser demarcadas entre “A Rosa do Povo” e “Confissões de Minas”, são destaques: o tempo sob a forma de transição, de passagem, de acontecimento e de memória, a morte: sob a forma de cancelamento da vida e ruína dos homens e das cidades, o olhar em si: sob a forma de questionamento e ironia deste “eu” no mundo e o nascimento: sob a forma da utopia comunista e de renascimento da literatura.  
Por fim, estes livros destacam um momento de reflexão sob o tempo, mas antes de tudo através do olhar particular de quem os escreveu. Quando Carlos Drummond de Andrade em “Escrevo estas linhas” realiza as referências do período, o mundo já participara de muitas destruições e os regimes totalitários de Hitler e de Mussolini estavam em um começo de declínio. A batalha de Stalingrado foi um ponto-chave para a derrocada do regime nazista, assim, o autor enfatiza a necessidade de se incorporar o tempo na literatura, a necessidade de olhar além de si mesmo. A mesma ressalva é realizada em “Poesia do Tempo”, no qual o autor realiza críticas à poesia distanciada da vida ou como fuga da realidade.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 16. ed. Record, Rio de Janeiro: 1995.
________. Confissões de Minas.  Cosac Naify: São Paulo, 2011.