Neste blog, há textos de aulas que assisti durante graduação em Letras, são contos, poemas, entre outros. "Leituras descontínuas" tem relação com as leituras que faço no dia-a-dia. São leituras de poemas, trechos de livros, pois que não existe continuidade nas leituras: lê-se um livro, uma imagem, um outdoor, um poema, um conto, uma crônica, por isso a descontinuidade. A maior parte dos textos - quando meus, são apenas ficções, sem correspondência exata com a realidade.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
" (...) Admitirá que segredos iguais se cultivam na grande cidade e, mesmo, que uma cidade, exclusão feita de prédios, veículos, objetos e outros símbolos imediatos, não é mais que a conjugação de inúmeros segredos dessa ordem, idênticos e incomunicáveis entre sí, e pressenrtidos somente por poesia ou amor, que é poesia sem necessidade de verso. (...)"
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
As cidades e a memória 3
Inutilmente, magnânimo
Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar
de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos
arcos dos pórticos, de quais laminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei
que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das
relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância
do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio
esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o
percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto
do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa água das
chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de
tiro da canhoneira que surge inesperadamente
atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas redes de
pescae os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela
milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho
ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre molhe.
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui
das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria
conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela
contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das
janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes,
esfoladuras.
Italo Calvino( As cidades Invisíveis – Tradução Diogo Mainardi)
As cidades e a memória 1
Partindo dali
e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade
com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas
lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as
manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por
tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa
noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas
se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de
uma mulher que grita: uh! é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido
uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.
Italo Calvino( As cidades
Invisíveis – Tradução Diogo Mainardi)
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
A chave
Agora era
tarde para dizer que não ia, agora era tarde. Deixara que as coisas se
adiantassem muito, se adiantassem demais. E então? Então teria que trocar a paz
do pijama pelo colarinho apertado, o calor das cobertas pela noite gelada, como
nos últimos tempos as noites andavam geladas! País tropical ... Tropical, onde?
" Foi-se o tempo", resmungou em meio de um bocejo. Devia haver no
inferno o círculo social, aparentemente o mais suportável de todos, mas só na
aparência. Homens e mulheres com roupa de festa, andando de um lado para outro,
falando, andando, falando, exaustos e sem poder descansar numa cadeira, bêbados
de sono e sem poder dormir, os olhos abertos, a boca aberta, sorrindo, sorrindo
... O círculo dos superficiais, dos engravatados, embotinados, condenados a
ouvir e a dizer besteiras por toda a eternidade. "Amém", sussurrou
distraidamente. Cerrou os olhos. Cerrou a boca. Mas por que essa festa?
"Estou exausto, compreende? Exausto!", quis gritar, enquanto
batia com os punhos fechados na almofada da poltrona. Voltou para a mulher o
olhar suplicante, " Então não compreende? Exausto... "
— Tom! Que tal se você já começasse a se
vestir?
Claro
que não compreendia nada, a cretina. Festa, festa, festa! O dia inteiro e a
noite inteira era só festa, era vestir e desvestir para se vestir em seguida,
" Depressa que estamos atrasados!" . Atrasados... Ter que se barbear
, escolher a gravata, encolher a barriga, obrigando-a a se refigiar no primeiro
espaço vago, aquela pobre, aquela miserável barriga que não tinha nunca o
direito de ficar à vontade, nem isso! E armar a expressão cordial e ficar
sorrindo até às cinco da manhã, os olhos escancarados, aqueles olhos mortos de
sono! Mas por quê? Cadelas. Não passavam todas de umas grandes cadelas
inventando jantar após jantar para se exibirem.
— Feito putas.
— Que foi que você disse, Tom? —
perguntou a mulher entrando no quarto. Vestia apenas uma ligeira combinação de
seda preta, mais renda do que seda. — Deu agora para falar sozinho?
Teve um
sorriso. Mas assim que a mulher desviou o olhar, sua fisionomia ficou novamente
pesada. Recostou a cabeça na poltrona, relaxou os músculos. E bocejou, distendo
as pernas. Se pudesse dormir ao menos aquela noite, enfiar-se na cama com uma
botija, uma delícia de botija, criando assim aquela atmosfera terna entre seu
corpo e as cobertas... Ô! a melhor coisa do mundo era mesmo dormir, afundar
como uma âncora na escuridão, afundar até ser a própria escuridão, mais nada.
Antes, o copo de leite quente, bastante açúcar.
— Li numa revista que as mulheres que não dormem no
mínimo dez hora por noite acabam com celulite antes dos trinta anos.
Ela escovava os
cabelos. Deteve a escova no ar, abriu a cortina espessa da cabeleira e espiou.
Tirou um fio de cabelo da escova. Deixou- o cair.
— Celulite?
— Foi o que eu li.
— Bobagem! Depois, isso não me
atinge, tenho a carne duríssima, olha aí — acrescentou ela, estendendo a perna
nua até a poltrona. — Pegue para ver... Tem mulheres que a carne é mole que nem
manteiga, mas a minha parece madeira, olha aí!
Ele tocou com as pontas dos dedos na longa perna
bronzeada. Concordou, afetando espanto. E voltou para a janela o olhar enevoado.
A quantidade de homens que daria tudo só para ver aquelas pernas. As famosas
pernas. Besteira, onda. Baixou o olhar para os próprios pés. Com aquelas meias,
pareciam pés de um rapaz, ela gostava das cores fortes. Francisca preferia
cores modestas, mas Magô era jovem e os jovens gostam das cores, principalmente
os jovens que vivem em companhia de velhos. E que desejam disfarçar esses
velhos sob artifícios ingênuos como meias de cores berrantes, camisas
esportivas, gravatas alegres, alegria, meus velhinhos, alegria! Dia virá em que
ela vai querer que eu pinte o cabelo.
— Mas por que esse jantar agora?
— Ora, por quê! Acho que a Renata
quer exibir o nariz novo, ela está de nariz novo, você já viu?
— Já. Ficou pavorosa.
— Você acha mesmo? — espantou-se
Magô. Teve um risinho. — O médico cortou demais, foi isso.
— Não sei por que tanto jantar
sem motivo nenhum.
— Mas precisa haver motivo
especial para um jantar? — perguntou ela inclinando-se. Recomeçou a escovar
vigorosamente os cabelos. — E depois, estamos disponíveis, não estamos?
Disponíveis. E como se exprimia bem, a sonsa.
Contudo, há alguns anos, que enternecedor vê-la roendo as unhas quando se
intimidava. Ou morder o lábio quando não sabia o que dizer. E nunca sabia o que
dizer. “Vai desabrochar nas minhas mãos”, pensou emocionado até às lágrimas.
Desabrochara, sem dúvida. Lançou-lhe um olhar. “Mas não precisava ter
desabrochado tanto assim.”
Com um gesto lento, abotoou a gola do pijama.
Levantou os ombros.
— Como esfriou.
Ela atirou a cabeleira para trás. Passou creme nas
pernas, nos pés. Em seguida, devagar, voluptuosamente, esfregou as solas dos
pés no tapete.
— Sabe que não sinto frio? Já
estamos no inverno?
— Em pleno.
— Pois não sinto frio nenhum.
— Acredito — murmurou ele
seguindo-a com olhar.
Descalça,
seminua e radiosa como se estivesse debaixo do sol. Tanta energia, meu Deus.
Havia nela energia demais, em excesso, ai! a exuberância dos animais jovens, cabelos
demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos até
quando respiravam. Podia quebrar uma perna. Mas não quebrava, naquela idade os
ossos deviam ser de aço. Bocejou.
Ela
agora passava creme no rosto, podia ver-lhe os dedos untados indo e vindo em
movimentos circulares. Não precisava dormir? Não , não precisava e quando
dormia, acordava impaciente, aflita por recuperar o tempo desperdiçado no sono.
A perna quebrada seria uma solução...
— Tom querido, você está
cochilando! Quer um drinque para animar?
Ele
escondeu as mãos nos bolsos do pijama. Abriu com esforço os olhos que
lacrimejavam. “Não quero beber, quero dormir!”, teve vontade de gritar. Sorriu
com doçura.
— Não, Magô, hoje não quero beber
nada.
— Se você tomasse um drinque,
aposto que se animaria!
— Mas estou animadíssimo...
Ela despejou água – de – colônia nas
mãos. Abanou-as em seguida para secá-las. “Sabe que estou olhando e fica
então a se exibir”, pensou. “ Uma
exibicionista. Se soubesse a data da morte, doaria depressa o esqueleto à
Faculdade de Medicina, para continuar ...”
— Lasquei duas unhas — lamentou
ela inclinando-se para calçar as meias. — E não me lembro onde foi.
Fechou os olhos. As unhas de
Francisca eram curtas, unhas de mãos eficientes, com uma discreta camada de
esmalte incolor. Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes.
Depois foram os cabelos. Podia ter reagido . Não reagiu. Parecia mesmo
satisfeita em se entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou. Gostava de
jogar paciência, as mãos muito brancas deslizando pelo baralho. A vitrola
ligada, discos próprios dos programas da saudade. “Mas, Francisca, que horror,
esse samba é antiqüíssimo, você tem que ouvir coisas novas! “ Ela sacudia a
cabeça, “ Não quero, deixa eu com minhas músicas, essas outras me atordoam
demais !” Tardes de Lindoia. Os jardins, os copinhos, “ Esta fonte é
excelente para reumatismo ...”.
— Tom, que tal?
Abriu os olhos num estremecimento.
— O quê?!
— Minha peruca! — exclamou Magô
contornando com as mãos os cabelos. A franja comprida ameaçava entrar-lhe pelos
olhos bistrados. — Você gosta?
— Mas por que peruca? Você tem tanto
cabelo, menina.
— Ora, está na moda. E posso variar
de penteado, fica fácil.
Molemente
ele estendeu o braço até a mesa de cabeceira. Apanhou a caixa de cigarros.
Estava vazia. Fechou-a. Melhor, assim fumaria menos. “Na sua idade”, começara o
médico na última consulta.
Na
sua idade. Inútil esquecer essa idade porque as pessoas em redor não esqueciam,
há dez anos o pai de Magô já viera com isso embora não tivesse coragem de
completar a frase. “ Na sua idade...” Ela também estava na sala, fingindo ler
uma daquelas infames revistinhas de amor. “ Que é que tem na minha idade?”,
provocara-o. O homem entrelaçou no ventre as mãos nodosas. As unhas eram
pretas. “ O caso é que minha filha só tem dezoito anos e o senhor tem quarenta
e nove, a diferença é muito grande”, ponderara, coçando a cabeça com os dedos
em garra, exatamente como um macaco se coçaria. “Hoje não soma tanto. Mas daqui
a dez anos como vai ser?” Ele então apanhou a capa. O chapéu. Abriu a porta e
teve aquele gesto dramático: “ Daqui a dez anos o problema de ser corno ou não
será um problema exclusivamente meu!”.
— Será que o Fernando vai também?
— O Freddy? Não tenho a menor idéia.
Por quê?
E já tinha apelido, pilantra.
Freddy.
— Por que Freddy? Por que isso?
— Mas todo mundo só chama ele de
Freddy!
Todo mundo era ela. Gostava de pôr apelidos, vinha
logo com aquelas intimidades.
— Não entendo como um tipo desses
faz sucesso com as mulheres. Analfabeto, gigolô...
— Gigolô?
— É o que corre por aí.
— Ah, Tom não posso acreditar!
— Se não é, tem cara. Um pilantra
de marca fazendo blu-blu-blu naquele violãozinho.
Pensativamente ela caçou os sapatos.
— Tem uma voz linda.
— Voz linda, onde? Uma voz de
mosquito, a gente precisa ficar do lado para poder ouvir alguma coisa.
Afeminado...
Afeminado
ou efeminado? Bocejou. Enfim, uma besta quadrada. E aquelas idiotas babando de
maravilhamento. Tinha juventude, mais nada. Crispou os lábios. Tinha juventude.
“Ju-vem-tu-de...”, murmurou voltando o olhar mortiço em direção ao espelho. Ela
adoraa espelhos, dezenas de espelhos por toda a casa. Aquele ali então era o
pior, aquele que apanhava o corpo inteiro, sem deixar escapar nada. Com ele
aprendera que envelhecer é ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos
e o contorno do rosto acaba por se decompor como um pedaço de pão a se
dissolver na água.
— Mas,
Tom, você não vai mesmo se vestir? Quase nove horas!
— Fico pronto num instante,
enquanto você se pinta dá tempo de sobra.
— E a barba? Não vai fazer?
— Mas é preciso? — gemeu passando
a mão no queixo.
— Já fiz a barba hoje, minha pele
está ficando escalavrada de tanta gilete.
— Então vá com essa cara de
misericórdia mesmo! Já disse, Tom, já disse que você fica abatidíssimo com a
barba crescida. Parece um velho.
— Eu sou velho.
— Ah, lindinho, não fale assim,
vamos, levanta, vai fazer sua barbinha — pediu ela acariciando-lhe a cabeça.
— Não.
— Nunca vi tamanha má vontade,
francamente!
— Fazer o quê nesse jantar, me
responda depressa.
— Comer, ora...
— Mas se não posso comer nada,
tenho o regime. O que preciso é de dormir, dormir!
— Pois durma!
Encarou-a. Era o que ele queria.
— Ainda vou ficar pronto antes de
você — ameaçou, apoiando as mãos na poltrona.
— Chegou a se levantar. E
deixou-se cair novamente. Fechou os olhos. Bocejou. Contaria até cinco e então
se levantaria como um raio. Até dez... Esfregou os olhos.
— Meu Deus.
— Está com alguma dor, Tom?
Lançou-lhe um olhar demorado.
— Você está linda?!
Sorria ainda. Elas negavam
sempre, fazia parte do jogo. Francisca era o oposto e contudo tivera aquela
mesma espressão a última vez em que lhe dissera isso, “ Francisquinha, você
está linda”. Ela então inclinara a cabeça para o ombro num muxoxo: “Ah, Tomás,
eu? Linda?...”. Não deixou que ela proseguisse negando: “Linda, sim, quando
você se enfeita um pouco fica uma beleza, você precisa ser mais vaidosa,
querida. Veja as outras mulheres em seu redor!”. Ela voltara a colocar os
óculos. “Mas na minha idade, Tomás...”
Aquela obsessão de idade. Porque
falava tanto em idade? Chegava ser irritante às vezes. “Também tenho cinquenta
anos, como você, não tenho? Por acaso vou agora cobrir a cabeça e esperar a
morte?” Ela colocara o disco na vitrola. “Tomás, você já viu como a noite está
bonita? Por que não vai dar uma volta?” Ele foi. Na volta, encontrara Magô.
Teve a sensação de nascer de novo quando ela o chamou de Tom. Sentira-se um
outro homem. Outro homem. Que anúncio usava essa frase? “Fiquei um outro homem”.
O anuncio estava num bonde, devia ser de um xarope. Fazia tanto tempo. Saudade
de andar de bonde, ir lendo os anúncios, os avisos tão cordiais, tão prudentes:
“Espere até o bonde parar!”. Tempo da prudência, tempo da consideração. Era bom
deslizar pelas ruas desertas, conchilar naquele balanço para a direita, para a
esquerda, como num berço...
— Então, Tom, resolva logo, a
Renata fica uma fúria quando a gente se atrasa.
— Eu quero que essa Renata vá pro
fundo do inferno.
— Tom!
— Ela com toda sua corja de
convidados.
— Ih, como você anda desagradável
— exclamou a jovem fechando o zíper do vestido. — Você não faz idéia como anda
desagradável ultimamente.
“Ando com
sono”, ele quis dizer. Levantou friorento a gola do pijama até as orelhas.
Abriu a boca para bocejar, as mãos em concha diante da boca, aquecendo-as com o
bafo. Dormiria uma noite inteira e a outra noite inteira e a outra ainda...
Noites e noites dormindo até morrer de dormir. Na vitrola, a musiquinha sem
neurose. E Francisca ao lado, entretida na sua paciência, ah, como amava aquele
doce som das cartas que murmurejavam sobre a mesa enquanto também ela murmurava
coisas que não exigiam resposta. Queria um valete, vinha uma dama: “Não era de
você que eu estava precisando”, ralhava. Os móveis antiquados. Os vestidos
antiquados. A beleza antiquada. “Mas Francisquinha, você precisa usar uns
vestidos mais atuais, precisa se pintar!” Deu-lhe um vidro de perfume. Deu-lhe
um batom que viu anunciado numa revista, uma nova tonalidade que fazia até as
estátuas despertarem, estava escrito, com essa cor até as estátuas acordam! Deu-lhe
um colar de contas vermelhas, dezenas de voltas vermelhas, “Somos jovens ainda,
minha querida! Vamos reagir?” Olhara-o com uma expressão reticente. Seria
ironia? Não, talvez nem isso, era generosa demais para ser irônica. Olhara-o
quase como uma mãe olha para o filho antes de entregar a chave da porta.
— Tom, você acha que essa luva
combina? Tom, estou falando, responda!
— Combina, meu bem, combina.
— Que sabe a verde?
— Essa está ótima.
Quase
como uma mãe olhando para o filho. Então ele baixou a cabeça e saiu. Na rua
sentira-se um adolescente apertando a chave no bolso. “Sou livre!”, quisera
gritar às pessoas que passavam, aos carros que passavam, ao vento que passava. “Livre,
livre!”
Ah, se
pudesse voltar sem nenhuma palavra, sem nenhuma explicação. Ela também não
diria nada: era como se ele tivesse ido comprar cigarros. “Tudo bem,
Francisquinha?”, perguntaria ao vê-la franzir de leve as sombracelhas. Ela se
inclinaria para o baralho: “ Está me faltando uma carta...”.
A voz de
Magô pareceu-lhe anônima. Irreal. Ouviu a própria voz pastosa mas tranqüila.
— Vá você,
querida. Divirta-se.
Ela ainda
insistiu. Teria mesmo insistido? Os saltos do sapato ecoaram no silêncio como
pancadas algodoadas, fugindo rápidas. Estendeu a mão até a cama e puxou a
coberta. Cobriu-se. Tudo escuro, tudo quieto. O perfume foi-se suavizando e ficou o perfume de um jardim de estátuas, estátuas alvíssimas que
dormiam sem pupilas, nenhuma cor conseguiria fazer com que abrissem as pálpebras.
Estendeu molemente as pernas. As pernas de Magô ressurgiram na escuridão:
dançava nua, esfregando os pés no tapete enquanto a música do violão foi
subindo pelas suas pernas, como meias. Agitou-se e quis fechar a porta na cara
do homem de unhas pretas, “O problema é meu!” A música decomposta já chegava
até as coxas das pernas de colunas, “Cuidado, Magô! O Fernando não!...”.
Dançarina
e músico pousaram como poeira na antiga mesa. Abriu-se num leque o baralho
murmurejante. E reis com pé de lã foram saindo, arrastando seus mantos de
arminho. Enrolou-se num dos mantos e ficou sorrindo para Francisca. Ela parecia
luminosa no seu vestido de opalina rosada, mordicando de leve a ponta de uma
carta. “Posso?”, perguntou-lhe, deitando a cabeça no seu colo.
Devolveu-lhe
a chave.
Lygia
Fagundes Telles (Antes do Baile Verde)
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